Parlamento ouve presidente do INEM ao ritmo de “não há estrelas no céu”

Audição de Paulo Campos marcada por várias frases coladas à canção de Carlos Tê e Rui Veloso.

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A audição do presidente do INEM foi requerida pelo PS Miguel Manso

“Acha que o mundo inteiro se uniu para o tramar?” A pergunta foi lançada ao presidente do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) pelo deputado socialista José Junqueiro, na Comissão Parlamentar de Saúde desta quarta-feira. A referência implícita à letra da música Não há estrelas no céu, escrita por Carlos Tê e celebrizada por Rui Veloso, não passou despercebida a Paulo Campos — que, em resposta ao parlamentar do PS, continuou a socorrer-se da letra que acabou por se tornar na canção oficial da audição. Primeiro, disse que com o seu conselho directivo “deixou de haver estrelas no céu” do INEM, para mais tarde arriscar outro verso em que preferiu dizer: “As nossas estrelas são os nossos técnicos.”

A audição do presidente do INEM foi requerida pelo PS, que quis que Paulo Campos prestasse “esclarecimentos sobre as graves disfuncionalidades na rede de emergência médica”. Na intervenção inicial, José Junqueiro começou por afirmar que “há hoje mais pessoas a solicitar urgências, mas a resposta do INEM é mais curta e aumentou o tempo de espera”. O socialista criticou ainda a “instabilidade orgânica” no instituto, salientando casos de inoperacionalidade de Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação (VMER), demissões, encerramento de serviços e a “contestação generalizada dos colaboradores”.

José Junqueiro criticou também que os problemas sejam averiguados sem darem origem a uma resposta e referiu-se de forma generalizada aos inquéritos abertos, mas sem mencionar explicitamente o caso que envolveu um suposto transporte irregular da mulher de Paulo Campos, também funcionária no INEM. O tema regressaria apenas no fim da audição.

“Há sempre inquérito mas nunca há resposta. O ambiente laboral é um ambiente péssimo. Neste contexto, o senhor presidente acha-se confortável no exercício das suas funções?”, questionou o socialista, que insistiu: “Acha que o mundo inteiro se uniu para o tramar?”

O regresso de Carlos Tê não chegou logo nas primeiras palavras do discurso de Paulo Campos, que optou antes por se apresentar. “Permitam-me que brevemente vos diga quem eu sou. Fiz o meu percurso de baixo para cima. Tripulei durante 15 anos ambulâncias de emergência”, disse, explicando que é médico internista e major. “A minha carreira não é uma carreira política.”

Fez também questão de destacar que na sala da comissão — mais cheia do que nos dias de audição do ministro da Saúde — tinha vários acompanhantes. “Tenho na sala quase todos os directores de departamento do INEM. Que sirva para afastar o espectro de que todos os directores se estão a demitir por causa do presidente do INEM.”

Os momentos poéticos continuaram. O major socorreu-se do mundo das aves para lembrar que em todas as áreas haverá sempre algo que não funciona ou alguém em sentido contrário. “Uma ambulância não é a andorinha que faz a diferença”, garantiu. Mesmo assim, deixou claro que enquanto houver um técnico “descontente” haverá um “presidente do INEM descontente e preocupado”. Sobre a “falta organizada” de alguns técnicos no dia 8 de Junho, lamentou o sucedido e garantiu que ninguém ficou sem resposta do INEM por esse incidente. Aliás, a operacionalidade das VMER está nos 98% quando, em 2008, era de 94%, pelo que não compreende as actuais críticas.

“Tentativa de assassinato de carácter”

Paulo Campos aproveitou o momento para defender que desde que assumiu a presidência do instituto, em Março de 2014, se tem concentrado em reforçar os meios técnicos e humanos. Mesmo assim, assumiu que nos quadros conta com 1226 técnicos — o que significa que faltam 416 pessoas para completar os quadros do instituto. Assumiu também que 30% a 40% do trabalho é feito com recurso a horas extraordinárias, mas reforçou que o valor é semelhante ao registado desde 2007. O médico atribui o actual descontentamento ao facto de as horas extraordinárias terem visto o seu valor cair devido às medidas tomadas no âmbito do plano de ajustamento.

Se mais não está feito, advertiu Paulo Campos, isso deve-se a restrições orçamentais conjugadas com a dificuldade em cumprir as leis de que os próprios deputados são autores. Assegurou, ainda, que estão mais unidos do que no passado.

“Com este conselho directivo deixou de haver estrelas no céu. Somos um todo”, insistiu, atribuindo mais tarde as várias notícias de problemas no INEM a uma “tentativa de assassinato de carácter ao longo dos últimos meses” de que diz estar a ser alvo.

As declarações de Paulo Campos encontraram coro na bancada do PSD e do CDS-PP, que usaram da palavra para entrarem no ritmo da canção e concordarem que o INEM tem visto os seus meios reforçados e melhorado a resposta. Sobre as notícias de conflitos internos na instituição, a social-democrata Conceição Bessa Ruão destacou que na sala da comissão estavam quase todos os directores de serviços do INEM a assistir, “numa manifestação de apoio ao presidente”. A presença de elementos do sindicato foi omitida.

Já PS, PCP e BE desafinaram e mostraram-se preocupados com a inoperacionalidade de alguns meios e pela exaustão relevada pelos técnicos de ambulância e emergência, devido aos poucos recursos humanos e utilização excessiva do trabalho extraordinário. Duvidaram também da capacidade da direcção do INEM fazer “em quatro meses o que não foi feito em quatro anos”, apontando a coincidência da contratação de mais 85 técnicos e 70 operadores de telecomunicações com o período pré-eleitoral.

A melodia voltou numa nova intervenção de José Junqueiro, que em resposta à presença na sala de outros responsáveis do INEM condenou a “estratégia de mobilização” do presidente. O socialista antecipou que Paulo Campos um dia ficará sozinho com mais um verso: “Por mais amigos que tenha sinto-me sempre sozinho.” Fez também um desvio à canção que mereceu reparos negativos de algumas bancadas, que o acusaram que “mau-gosto”: desafiou o presidente do INEM a mobilizar para a comissão de saúde não os responsáveis do instituto, mas sim os familiares das vítimas que morreram sem auxílio. Em resposta, Paulo Campos preferiu destacar a solidão de Junqueiro, em referência à ausência da socialista Luísa Salgueiro.

Para Paulo Campos, as críticas enumeradas são infundadas e os números, assegura, estão do seu lado. O presidente do INEM informou que a adesão dos técnicos de ambulância e emergência à greve ao trabalho extraordinário que começou nesta quarta-feira está a ser de 0%. Números refutados pelo vice-presidente do Sindicato dos Técnicos de Ambulância e Emergência, Pedro Louro, que disse ser impossível uma greve convocada por alguém ficar sem adesão. A estrutura estima que pelo menos três viaturas não tenham trabalhado.

Para o major, este protesto, que foi marcado por tempo indeterminado, é apenas mais um exemplo da “tentativa de assassinato de carácter” de que diz ser alvo. O remate da canção foi feito com mais um toque pessoal: o presidente do INEM disse que tem quatro filhos e a mulher no Porto — justificando que fala dela por as notícias já a terem envolvido — e garantiu que a prova de que confia no instituto é “saber que estão seguros com a emergência médica”. Quanto a Junqueiro, o médico lamentou que se concentre na “chuva de estrelas” pouco expressiva de quem ouve outra canção.

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