Para quem são as "barrigas de aluguer"?

Foto
A chamada "barriga de aluguer" é liminarmente proibida em Portugal Foto: Paulo Pimenta

As leis são feitas para pessoas mas, quando a Assembleia da República discutir a maternidade de substituição, os deputados poderão não saber de quem estão falar. São homens e mulheres que escondem o desejo de ter um filho como se planeassem um crime e que aprenderam a calar-se para não se sentirem julgados. Fazem-no tão bem ou tão mal que vivem entre nós e não damos por eles.

Manuel liga para o número de telemóvel que lhe foi dado por um médico, que serviu de intermediário. Ele conhece o nome da jornalista a quem está a telefonar, mas ela não sabe o seu nome. Foi o combinado. No primeiro telefonema, diz que não decidiu ainda, se aceitará dar o seu testemunho. "A maior parte das pessoas não entende isto, nem sei se vale a pena explicar."

Mais tarde, depois de vários contactos, há-de dizer: "Em Portugal, a barriga de aluguer é crime, sabia? Punível com pena de prisão. E é muito estranho estar a assumir em voz alta que a única maneira de eu e a minha mulher termos um filho é irmos ao estrangeiro fazer uma coisa que aqui me levaria à cadeia." Ele está sentado num canto do sofá; Paula, a mulher, no outro. Ela quase não fala; ele mostra-se racional, metódico, aparentemente frio na forma como antecipa, num discurso lógico, a desilusão. (Ver depoimentos completos na página 6)

Leu as notícias sobre a posição do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, que recomenda à Assembleia da República a legalização, nalguns casos, da maternidade de substituição. Mas não quer criar expectativas sobre o "tremendo avanço que isso representaria".

Hoje, a chamada "barriga de aluguer" é liminarmente proibida em Portugal. A lei diz que mãe é quem dá à luz; e também que "quem concretizar contratos de maternidade de substituição a título oneroso será punido com pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias".

Se a Assembleia da República aceitar as sugestões e alterar a legislação em vigor, haverá uma aberta. Continuará a não ser permitido qualquer pagamento, mas uma mulher que não tenha útero devido a um acidente ou a uma doença oncológica ou cujo útero não tenha dimensões ou outras características que permitam uma gravidez, poderá vir a celebrar de um negócio jurídico de maternidade de substituição.

O procedimento é muito simples: os óvulos e os espermatozóides do casal são fertilizados in vitro; no momento da transferência dos embriões, estes são colocados no útero de uma segunda mulher, amiga ou familiar. Se a lei for integralmente cumprida, quando nascer, a criança será filha do casal, dos pontos de vista biológico e legal.

"Só quem lida com estas pessoas pode ter ideia do que isto significa. Mas pode-se sempre tentar imaginar a frustração e o sofrimento daqueles para quem esta é a única possibilidade de ter um filho", diz Vladimiro Silva, consultor da Direcção-Geral da Saúde para questões da procriação medicamente assistida e administrador de uma clínica, a Ferticentro, onde aquelas técnicas são aplicadas.

Este médico não sabe quantas pessoas poderão vir a beneficiar da alteração da lei. Aparentemente são poucas, mas a maior parte não procura as clínicas, por saber que a maternidade de substituição é ilegal. Outros fazem-no para se certificarem de que, para terem o seu filho genético, terão de se deslocar aos chamados paraísos reprodutivos.

"Basta ir à Internet: nos EUA há empresas mediadoras e gabinetes de advogados que tratam da escolha do Estado cuja lei melhor se adequa a cada situação, que fazem seguros de saúde para a mãe de substituição e que asseguram que não há problemas com a entrada da criança no país de origem dos pais biológicos. O casal não gasta menos de 100 mil euros", avalia Vladimiro Silva. Quem tem menos posses, diz, pode recorrer à Índia ou à Ucrânia, "onde o processo fica muito mais barato (cerca de 15 mil euros), mas a possibilidade de algo correr mal é muito maior".

Vladimiro Silva diz não saber indicar quem tenha passado por aquele processo. Na verdade, já é difícil arranjar quem admita ter pensado nele.

Os outros contactos com casais que desejam beneficiar da maternidade de substituição envolvem cautelas semelhantes às de Manuel. A insistência no pedido de anonimato, o discurso cuidadoso e a negação da esperança são elementos comuns. O mesmo acontece em relação aos dias de hesitações e à ressalva de que só falam porque "o momento é decisivo".

Temem ser "julgados" - nunca discutiram o assunto com mais de quatro ou cinco pessoas (familiares directos ou amigos muito próximos). A maior parte daqueles com quem convivem nem sequer sabe que enfrentam problemas de fertilidade, quanto mais que são irresolúveis sem o recurso à "barriga de aluguer".

Emocionado, Pedro diz que, às vezes, pensa "se não seria melhor dizer a verdade, para acabar de vez com as perguntas". "Dantes era: "Então, quando te casas?" Agora querem saber quando teremos filhos... E insistem, insistem...". Manuel queixa-se do mesmo. Nenhum deles responde com a verdade. Sentem-se em falta, é como se tivessem falhado um compromisso, como se tivessem saltado uma fase da vida.

Com aqueles que são apenas conhecidos, safam-se com um "andamos a trabalhar para isso". Aos amigos, dizem que ainda é cedo ou que ainda estão a pensar se querem ser pais; e depois - quando já são os únicos do grupo que não arrastam sacos de fraldas, carrinhos de bebé e papas - afastam-se, vão deixando de aparecer, evitando o contacto e as perguntas. Não se sentem melhor por isso - a solidão torna-se opressiva, a necessidade de ter um filho ainda mais urgente, constata Filomena Gonçalves, da Associação Portuguesa de Fertilidade.

"Acha que podia dar-nos o contacto de outras pessoas na mesma situação? Há anos que procuramos na Internet. Não conseguimos identificar ninguém", pede Manuel. Sofia, a mulher de Pedro, diz o mesmo: "Nos próprios fóruns sobre infertilidade, somos julgados e criticados se falarmos sobre maternidade de substituição". Carla não tem dúvidas de que, se a lei for aprovada, terá de enfrentar muitas resistências para ter o seu filho: "A maior parte das pessoas com quem lido nunca aceitarão."

Sabem do que falam. Manuel, por exemplo, faz regularmente o teste, uma dor inútil que inflige a si próprio: "Experimente perguntar descontraidamente, à mesa do café, como se não tivesse nada a ver consigo, o que é que as pessoas pensam da maternidade de substituição. Vai ver que são contra. Porquê? Não sabem. Faz-lhes "impressão".".

A seu favor estes casais têm o facto de a proposta de alteração legislativa se destinar apenas a casos em que a impossibilidade de engravidar se deve a doença - a maternidade de substituição para homossexuais não está em discussão, o que poderá fazer baixar o tom da polémica. Pesa, no sentido oposto, esta invisibilidade das pessoas que podem beneficiar de uma nova lei.

O presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, Eurico Reis, entende que se escondam - "são absolutamente discriminados, são os últimos dos últimos". Mas avisa que "está no momento de aparecerem". "Mexam-se, mostrem-se, façam petições!", apela. "Mais tarde, se se vir que a coisa vai mesmo para a frente", diz Sofia. Manuel nem admite dar a cara. E Carla só o fará se a lei for aprovada - "Para derrubar preconceitos", promete.

"Só quero o que a maior parte já tem": Sofia, 29 anos

Podem chamar-me Sofia. Não é o meu verdadeiro nome, mas, por favor, entendam: a dor já é demasiado forte e não aguentaria somar-lhe a pressão do julgamento dos outros - dos que se sentem no direito de ver no meu desejo uma ilegalidade ou uma imoralidade, quando eu apenas quero o que a maior parte já tem: um filho.


Se falo é porque sinto que não posso deixar de o fazer quando ser mãe depende não da minha vontade, mas do querer de um grupo de deputados. Como será ter este poder de decidir sobre a vida dos outros?

Há uma coisa que preciso que entendam. Que de alguma maneira o meu filho já existe e só depende do vosso voto para chegar aos meus braços. Tenho tudo: os meus ovários, saudáveis, os espermatozóides do meu marido e a generosidade da minha irmã, que se dispõe a carregar o meu filho no seu útero. Choca-vos, isto? Mas como é que vos pode chocar um acto de amor?

Até entendo que vos assuste a possibilidade de negócio, o termo "barriga de aluguer", os riscos de alguém recorrer a este método por moda ou capricho. Mas os limites da lei estão nas vossas mãos e o amor está, certamente, dentro desses limites. Este bebé será da minha irmã na medida em que os seus filhos também são meus. Quanto à criança - acham que será difícil explicar-lhe que nasceu deste acto de amor?

Nem é muito meu falar de amor. E vocês? Falam de amor, na Assembleia da República? Acho que não - e é por isso que não me permito ter esperança. Leio as notícias e penso: isto foi só um passinho. Digo mesmo assim: "um passinho, um passinho só". Talvez seja uma tolice, mas sinto que, se controlar as expectativas, controlo a desilusão e vos retiro o poder de me magoarem. Na verdade, não suporto a ideia de que tenham esse poder de me magoar ainda mais.

"Está nas vossas mãos e, ao mesmo tempo, não está"
Pedro, 31 anos

Por mim, mostraria a cara e revelaria o nome, mas a "Sofia", minha mulher, não está preparada e eu entendo. Talvez ela tenha razão, talvez não seja possível explicar por que é tão importante ter um filho. Afinal, não é coisa que as pessoas que têm filhos estejam abertas a entender e a aceitar, precisamente por isso, porque têm filhos.


Não sei como é que isto vos soa, mas sinto que não posso deixar que o ciclo se quebre, que a minha família acabe, que termine em mim. Se essa ideia já é dolorosa, ter a solução presa por preconceitos humanos e leis desumanas torna o sofrimento insuportável.

Pesquisei tudo sobre a nossa única possibilidade, a maternidade de substituição ou a "barriga de aluguer", como lhe chamam. Sei, de cor, quais os países em que ela é legal e sobre cada um conheço os custos, os níveis de segurança e os riscos. Que alguém ganhe dinheiro com isto não me choca, desde que escolha em liberdade ter mais qualidade de vida ou proporcioná-la aos filhos, ao mesmo tempo ajuda pessoas como nós.

Esta possibilidade, este sonho caro, tornou-se quase real com a dádiva imensa dos meus cunhados, que disseram estar dispostos a ajudar-nos por puro altruísmo. A partir desse momento - a partir do momento em que soube que ter um filho dependia apenas de uma alteração legislativa -, conformar-me deixou de ser uma opção.

Como é que eu vos explico isto? De certo modo, eu já vivo com o meu filho, vivo com a falta dele, com o vazio que está no lugar dele, e sempre, a cada minuto, a toda a hora. Quero não dormir à noite, quero dar o biberão de madrugada, quero ter de mudar as fraldas sujas, quero acordar cedo para o levar à creche e sair a correr do trabalho para o levar para casa. Quero o que vocês têm, quero justiça no mundo, quero parar de pensar "que fiz eu para merecer isto", quero um filho, um filho meu.

Está nas vossas mãos e, ao mesmo tempo, não está. Porque eu não vou desistir - terei o meu filho. Aqui, se forem justos. Se não, noutro lugar.

"O meu filho não existe porque vivo em Portugal"
Manuel, 34 anos

Chamem-me Manuel. Ou José. Não me vou identificar e a razão é simples: já abordei com várias pessoas o tema da maternidade de substituição e a reacção é sempre a mesma: "Nem pensar". Não lhes falo de mim e da minha mulher, claro, falo em geral - do Cristiano Ronaldo, das estrelas de Hollywood... Mas não tenho dúvidas de que, se falasse de mim, a reacção seria igual: "Nem pensar".Os mais próximos, os que sabem o quanto sofremos, entendem. Os outros não. Sei o que digo. Faço pesquisas na Internet, frequento fóruns, e mesmo entre pessoas com problemas de infertilidade a "barriga de aluguer" é tabu. Para quem está de fora, então, nem se fala: "Com tantas crianças para adoptar..."


Por favor, não usem a possibilidade de adopção para negar o direito de ter um filho biológico. A adopção deve ser uma escolha, uma opção, e nunca a última saída, o último recurso. Não seria justo para as crianças adoptadas nem para os pais que as adoptam.

Acreditem: é muito estranho pensar que o meu filho não existe porque vivo em Portugal; que aquilo que aqui faz de mim um criminoso faria de mim, noutro país, um pai. Teria de pagar? Talvez. Não para criar uma profissão ou para alimentar uma carreira, mas para compensar a dádiva - porque não acredito que alguém carregue um bebé durante nove meses só por dinheiro.

O que é certo é que ninguém pára para pensar. É "não porque não", "sim porque sim" e, como mudar exige reflexão e esforço, o mais certo é que tudo fique na mesma.

Tão difícil de explicar e tão incrivelmente claro. É eu saber que alguém vai morrer e não lhe doar um rim; é você ver uma pessoa a esvair-se em sangue e negar-lhe uma transfusão. É o mesmo - nós queremos dar vida e queremos viver. Tão simples, não é? Parece tão simples. Complicado é perceber o que está a acontecer: nós temos uma doença, o medicamento existe e está ao nosso alcance, mas os deputados vão decidir se no-lo querem dar ou não.

"Até me assusta tanta esperança"
Carla, 37 anos

Tenho uma irmã que há dois meses me disse: "Se quiseres, o teu filho crescerá na minha barriga - faço-o de coração". Eu nem queria acreditar: "Sabes o que estás a dizer?" E ela respondeu: "Não amas a minha filha como se fosse tua? Não farias tudo por ela? Quando o bebé nascer, será o mesmo: também eu farei tudo por ele, mas como tia. Será o teu filho".


Conto esta história para que quem decide saiba que a maternidade de substituição pode ser muito bonita. A minha irmã sabe o que faz - já foi mãe, sabe o que é ter um bebé dentro dela. E, apesar disso - e por causa disso -, ofereceu-se para acolher o meu. Não é bonito?

Eu e o meu marido éramos capazes de ir viver para um país em que as "barrigas de aluguer" fossem legais, mas confesso que a ideia de pagar me faz impressão. Não me interpretem mal - eu iria! E acho que quem não tem uma irmã como a minha tem o mesmo direito de ter filhos. O que eu quero dizer é que agora, que sabemos que esta criança poderá vir a nascer em Portugal, a nossa esperança é imensa.

Até me assusta tanta esperança. Quero tê-la e ao mesmo tempo não quero. Mas como não acreditar? Se legalizaram o aborto, se reconheceram o direito a não ter filhos, como é que podem não reconhecer o direito a ter filhos? Como é que podem achar que dar vida é ilegal?

Os meus pais aceitam - afinal, será sangue do seu sangue. E se eu seria capaz de dizer a uma criança adoptada que um dia fora abandonada ou maltratada, que dificuldade poderei ter em dizer-lhe que nasceu do amor de um pai e de duas mães?

Não posso identificar-me por razões que não posso aqui explicar. Mas, se a lei for aprovada, até isso deixará de ser importante. Vou ter o meu filho e - acreditem - toda a gente vai saber!

Textos escritos por Graça Barbosa Ribeiro, com base em conversas com Sofia e Pedro, casados, e com Manuel e com Carla - todos nomes fictícios de pessoas reais.
Sugerir correcção
Comentar