Para alguns ex-alunos da Lusófona há uma parte do seu passado que vai deixar de existir

Especialistas em Direito Administrativo explicam as consequências das decisões do Ministério da Educação no caso da Universidade Lusófona.

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Lusófona tem de concluir o processo das nulidades até 15 de Abril Foto: PÚBLICO

Os 152 ex-alunos da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT) cujos processos académicos já foram declarados nulos, ou poderão vir a sê-lo muito em breve, passam a ter uma parte do seu passado como sendo inexistente.

“Um acto nulo não produz efeitos. É como se nunca tivesse existido”, explicou ao PÚBLICO o professor da Universidade Católica e especialista em Direito Administrativo, Mário Aroso de Almeida. Quer dizer, por exemplo, que no caso de se aplicar a um grau académico, a pessoa em causa “nunca foi licenciada”.

Conforme o PÚBLICO noticiou esta quinta-feira, a Lusófona já informou o ministério de Nuno Crato que declarou nulos (ou está em vias de o fazer) 75 processos académicos. Mas que em relação aos outros 77 aguarda ainda a resposta a esclarecimentos entretanto pedidos ao MEC, ou informações dos ex-alunos que serão afectados. O ministério fala de “ilegalidades especialmente graves” nos actos de creditação, para justificar que esses actos devem ser declarados nulos. A insuficiência de provas documentais que suportem alguns dos créditos atribuídos pela Lusófona à formação académica e experiência profissional anterior dos alunos é uma das irregularidades detectadas.

 


No passado dia 24 de Março, o secretário de Estado do Ensino Superior deu à universidade um prazo de 15 dias para a conclusão do processo. A contagem, esclareceu o MEC, é feita por dias úteis, portanto o prazo termina no próximo dia 15.

O MEC já comunicou à Lusófona que deve proceder à “cassação de diplomas e certificados que tenham saído atribuídos” àqueles ex-alunos. Entre os 152 processos está o do ex-ministro Miguel Relvas. Haverá alunos licenciados que vão deixar de o ser e outros que podem ter feito  apenas algumas cadeiras e verão anulados os seus certificados de frequência.

 


Mas o que significa isto na vida das pessoas que forem afectadas por esta decisão? E que consequências pode ter no que diz respeito às suas carreiras e aos actos que tenham praticado na presunção de que eram diplomadas? 

 


Alguns exemplos hipotéticos apontados: os actos praticados por um advogado que deixe de o ser, porque vê o seu título declarado nulo, “continuam a ser válidos para o seu constituinte”, diz o advogado e também especialista em Direito Administrativo, João Correia. Um professor que veja a sua licenciatura ser declarada nula, “tem que deixar de ser professor, mas as aulas por ele dadas são válidas”. E como “lhe foi conferido um diploma, não pode ser perseguido criminalmente por usurpação de funções, porque à partida não houve dolo da parte dele”, acrescenta.

“Em termos de carreira, a tendência é para a validação dos actos praticados, mesmo que  a qualificação de quem os praticou seja declarada nula, de modo a assegurar a confiança na ordem jurídica, o princípio de boa fé e a protecção de terceiros”, diz Jorge Correia. 

 


Alunos podem recorrer a tribunais

O advogado lembra ainda que a atribuição de um título académico “é um acto constitutivo de direitos” e que o cidadão prejudicado com a declaração da sua nulidade “pode recorrer a tribunal para impugnar” esta decisão. O mesmo podia ter sido feito pela universidade que atribuiu o diploma, se recusasse aplicar as ordens do MEC


O jurista estranha, aliás, que seja a própria entidade que tenha praticado o acto (neste caso a Lusófona, que conduziu a atribuição de créditos aos seus alunos) a declará-lo nulo: “Reconheceu que os argumentos do ministério eram válidos e auto-flagelou-se.” 

Pelo que se depreende da informação veiculada pelo MEC na quinta-feira, os 75 ex-alunos cujos processos já foram declarados nulos aceitaram a decisão. 

 


No despacho em que aponta para a nulidade dos 152 processos, o ministério especifica que a decisão só deve ser tomada “depois de ouvidos os interessados”. Segundo o MEC, a universidade pode contactá-los para lhes propor soluções, como a frequência de algumas cadeiras e, “nos casos em que for aplicável, proceder à instrução de novos procedimentos de creditação, de acordo com a legislação em vigor”.

 


Também a reitoria e a administração da Lusófona, numa nota enviada ao PÚBLICO, garantiram estar “a tomar todas as medidas em ordem a garantir que de forma nenhuma os interesses e legítimas expectativas dos alunos envolvidos saem minimamente beliscados deste processo”.  

 


Isto significa, comenta João Correia, que se pode estar apenas perante uma situação de “nulidade parcial”. Ou seja, os ex-alunos em causa, embora não podendo ser considerados licenciados, podem repor a situação se cumprirem certas condições, por exemplo realizando outras cadeiras. 

 


O Código do Procedimento Administrativo estabelece que a “nulidade pode ser declarada a qualquer altura”, que “não existe um prazo para o fazer”, esclarece Aroso de Almeida. É essa, de resto, uma das diferenças entre declarar a nulidade de diplomas e certificados, como o MEC pretende que a Lusófona faça, e anular diplomas ou certificados. Entre os processos académicos que o MEC mandou declarar nulos, há alguns que remontam a 2006.

 


O do ex-ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares Miguel Relvas é um deles. Tanto a Lusófona, como a defesa argumentam que a decisão sobre este caso em concreto já não compete nem ao ministério, nem à universidade, uma vez que o caso foi remetido para tribunal pelo MEC. Mas as opiniões divergem. “É uma matéria em que há opiniões para todos os gostos”, comenta Aroso de Almeida que, contudo, defende que, por se “tratar de uma declaração de nulidade, e, por isso, poder sempre ser declarada em qualquer tempo, o facto de se encontrar em tribunal não é obstáculo a que outros declarem o acto nulo. A universidade pode fazê-lo.”

 


João Correia tem opinião contrária: “A partir do momento em que o caso foi entregue ao tribunal, fugiu da competência do Ministério da Educação e da universidade. Só o juiz passa a ter competência para decidir”. 

Outros já fecharam

Contactado pelo PÚBLICO sobre como analisa este caso, Alberto Amaral, da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior diz que “durante muito tempo houve excesso de benevolência na atribuição de créditos aos alunos” e lamenta que “quando se detectam os problemas não se resolvam logo” as coisas e estas “se arrastem no tempo”. Recusa contudo apontar o dedo aos sucessivos ministérios da Educação, diz que é um problema “geral da sociedade portuguesa”. 

 


Os primeiros problemas na Universidade Lusófona  relacionados com o sistema de creditação de competências profissionais e académicas foram detectados em 2009. Nessa altura, a inspecção encontrou na universidade “processos individuais de alguns alunos” em que a aprovação das equivalências era feita pelos directores dos cursos e não pelo Conselho Científico da escola, com posterior ratificação do Conselho Científico Universitário, como determinavam os estatutos. Encontrou também processos com “documentos rasurados, não trancados, nem devidamente assinados”. Os inspectores deixaram várias recomendações à Lusófona. Mas só em 2012, quando foi publicamente conhecido que o então ministro Miguel Relvas concluíra em 2007, em apenas um ano, a licenciatura naquela universidade, cujo plano de estudos era de 36 cadeiras, distribuídas por três anos, o tema voltou à praça pública.

 


Alberto Amaral diz que já houve “três ou quatro curso” que fecharam por serem “demasiado generosos na atribuição de créditos” a alunos. Não diz quais nem quando — recorde-se que é a agência a que Alberto Amaral preside que atribui ou retira a acreditação dos cursos, sem a qual eles não podem funcionar. Questionado pelo PÚBLICO, o Ministério da Educação e da Ciência não esclareceu o que aconteceu nesses casos aos estudantes.

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