Papa consagra hoje a igreja do arquitecto de Deus

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A obra poderá estar concluída, com todas as torres e a Fachada da Glória, daqui a 15 anos, para o centenário da morte de Gaudí Enric Vives-Rubio

Devem concluir-se as obras da Sagrada Família de Barcelona? Há quem pense que não. Já em 1964, arquitectos e artistas como Le Corbusier, Miró e Tàpies contestavam, tal como dezenas de padres, a ideia da conclusão da obra de Gaudí. As polémicas à volta desta floresta de pedra continuam. Bento XVI preside hoje à dedicação do altar da nova basílica.

Na Sagrada Família de Barcelona encontramos o último grito tecnológico. Cento e vinte anos depois do início da sua construção, se Antoni Gaudí fosse vivo, talvez se espantasse: máquinas a fazer as suas maquetas! Máquinas e já não apenas gesso para dar forma aos seus rabiscos, cálculos e experiências sucessivas.

Oito décadas depois da morte do arquitecto catalão, Josep Tallada, 61 anos, mostra os dois aparelhos de impressão de moldes. São como impressoras de papel. Mas, em vez de debitarem folhas impressas com tinta, largam maquetas.

Tudo é feito a partir de um programa de computador que passa instruções à máquina. Em duas pequenas caixas onde se coloca um pó especial, o programa vai dizendo como deve nascer o relevo, a forma, a construção tridimensional. Dali, cria-se o modelo que irá servir para fazer a maqueta pretendida, à escala, no gabinete técnico.

Ainda menino, Josep frequentava a paróquia como acólito. Aos 14 anos, propuseram-lhe ir trabalhar como ajudante para a oficina de moldes da Sagrada Família (nessa altura, podia exercer uma profissão com essa idade). Ali conheceu ainda pessoas que tinham trabalhado directamente com Gaudí, que morreu inesperadamente atropelado por um eléctrico, antes de terminar a catedral. Foi ficando. Há cinco anos, passou a ter a responsabilidade da oficina de moldes, onde trabalham 12 pessoas.

Um dos trabalhadores faz um pequeno molde para uma maqueta. Na parede, uma placa atribui uma frase a Gaudí: “O trabalho é fruto da colaboração e esta só se pode fundamentar no amor. É por isso que é preciso afastar os que são fermento de ódio.”

Percebe-se que as duas impressoras de sólidos sejam a mais recente menina dos olhos de Josep Tallada. Mas elas, diz, são apenas uma ajuda, pois tudo continua a ser feito com os métodos de trabalho do arquitecto. Sejam os moldes, seja a reconstrução de maquetas. “Somos artesãos, investigamos a partir do que há, fazemos o que Gaudí desenhou e, se falta alguma peça importante, não se reconstrói.”

Ilegal, desnecessário e imoral

O debate sobre o (des)respeito para com a obra de Gaudí continua a ser um dos mais importantes no que diz respeito à intervenção na Sagrada Família. Corre por blogues, pela imprensa, pela televisão. Há ano e meio, a historiadora e crítica de arte María del Mar Arnús escrevia no El País um “Alerta vermelho” em defesa de Gaudí.

“O que se está a fazer na Sagrada Família é ilegal, insustentável, desnecessário e imoral. [...] Sem um processo de trabalho definido, contrário ao estabelecido por Gaudí, e sem nenhum respeito pelo seu legado, as obras do templo deram lugar, ao largo destes anos, a uma contínua adulteração.”

No blogue El Fenómeno Gaudí, Luis Gueilburt defende que a única solução para resolver esses e outros problemas relacionados com a herança de Gaudí seria a criação de uma verdadeira fundação.

O arquitecto David Mackay, da MBM Arquitectes (um dos ateliers que concebeu a Aldeia Olímpica de Barcelona), é um dos nomes mais importantes que se opõem à ideia de terminar as obras. E também fala do desrespeito pela herança gaudiniana.

Já em 1964, Mackay assinara uma carta em que se manifestava contra a ideia de prosseguir as obras do templo. Com ele, estavam o arquitecto Le Corbusier, os artistas Antoni Tàpies e Joan Miró ou o escritor Camilo José Cela. E ainda padres e teólogos, expoentes da época na Igreja Católica na Catalunha.

“Se considerarmos o edifício adicional como uma maqueta à escala real, já que segundo os arquitectos actuais se baseia no modelo de Gaudí, o templo teria de ser acabado sem o acrescento de símbolos ou outros elementos decorativos”, diz Mackay à Pública. Há pormenores introduzidos “que nada têm que ver com a mente criativa de Gaudí e o seu sentido táctil”.

Os 100 subscritores do texto de 1964, publicado como carta ao director do La Vanguardia, entre os quais o escultor Josep Maria Subirachs, que viria a ser o autor do grupo escultórico da Fachada da Paixão (1986-2005), não precisam de muitos argumentos. Em plena ditadura franquista, criticavam a ideia de um templo expiatório, construído através de donativos dos crentes, como forma de expiar os pecados da sociedade…

Edificar “um grande templo para toda a cidade” já não fazia sentido, pois a Igreja deveria descentralizar-se em “múltiplas paróquias” de bairro: “Para a acção pastoral na cidade, necessitam-se paróquias e não grandes templos; um grande templo expiatório de todo um povo é uma ideia fora de época.”

Do mesmo modo, terminar um edifício do qual não existiam “planos detalhadíssimos”, de um arquitecto que “criava a sua obra diariamente por impulsos desordenados”, era fazer uma construção “falseada e diminuída”. E acrescentavam: a solução era parar a construção, deixar a fachada e a abside como um grande retábulo e a Sagrada Família como um grande templo ao ar livre. Continuar a obra “não só não é positivo, como é contraproducente”, diziam.

A dedicação

A obra não parou. Bem pelo contrário. Após décadas de trabalho lento ou estagnado, acelerou nas últimas três, com o incremento do número de visitantes — quase três milhões por ano, um dos monumentos mais visitados de Espanha — e o consequente aumento de receitas: 25 a 30 milhões de euros por ano (um milhão e meio de euros são gastos mensalmente com custos directos da obra). Hoje, o Papa Bento XVI dedicará o altar, podendo a nave central começar a ser utilizada para celebrar missa, e dará ao templo a designação de basílica.

O arquitecto Jordi Bonet, 85 anos, sucessor de Gaudí enquanto responsável pela obra há 26 anos, é uma das 300 pessoas que trabalham na Sagrada Família. Nas últimas semanas, têm-se afadigado para ter tudo a postos para a cerimónia de hoje.

No meio da nave central, pronto para a fotografia, Bonet pede desculpa por uns segundos: “Estão a colocar mal aquelas lâmpadas.” Vai em passo de corrida junto do baldaquino da igreja. Ali, um operário em cima de uma grua ajeita as 52 lâmpadas que circundam a nova cobertura do altar. Bonet dá as suas ordens e regressa.

Este centro é o único espaço da igreja que, até à visita do Papa, não podia ser fotografado. Os responsáveis não queriam estragar o efeito de surpresa que o altar e o baldaquino podem provocar. Sente-se o contraste: de um lado, a imponência neogótica, as estranhas e elegantes colunas que forjam uma floresta de pedra criada por Antoni Gaudí; do outro, a finura e finitude do pequeno baldaquino.

A peça, em forma de anel, encima o altar. Como no baldaquino da catedral de Maiorca, também desenhado por Gaudí, como em quase todas as suas obras, o arquitecto assume aqui um programa teológico.

Aqui, Gaudí, cujo processo de canonização corre entretanto em Roma, escolheu as palavras que falam dos dons do Espírito Santo. É a forma tradicional de o catolicismo referir as virtudes de cada pessoa, que devem ser colocadas ao serviço dos outros: fortaleza, ciência, sabedoria, entendimento (inteligência), conselho, piedade e temor de Deus.

Por fora, conseguimos ler o hino natalício — “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade” —, porque o círculo feito pelo baldaquino e a sua ligeira inclinação permitem que este seja lido pelo interior e pelo exterior.

Faça-se luz

É meio-dia e os sinos da Sagrada Família tocam o Canto dos Pássaros, música tradicional catalã de Natal. Jordi Bonet explica que a ideia é representar, no presbitério, a zona do altar, as figuras da Trindade: Deus Pai, Jesus Cristo, Espírito Santo.

O “faça-se luz”, da narração bíblica do Génesis, é aqui traduzido pela cúpula de 75 metros de altura, de onde nasce uma luz branca que remete para a figura de Deus Pai. “Sem luz não há vida”, sublinha o arquitecto. O crucifixo, presença obrigatória ao pé do altar, recorda Jesus. As espigas de trigo do lampadário são o Espírito Santo.

A carga simbólica e a sua relação com a fé são essenciais para perceber o “arquitecto de Deus”, como tantas vezes é chamado o autor da Sagrada Família. Gaudí buscava na natureza inspiração para as suas estruturas e formas. Árvores, plantas, animais, pedras, tudo lhe servia como musa. “Gaudí pensa a totalidade. Um templo é uma obra de arquitectura, na qual se integram outras obras feitas por diferentes autores”, diz Jordi Bonet. “Pintura, escultura, música, canto”, tudo contribui para a obra total.

Em redor, é isso que vemos: a estrutura da nave central é uma floresta. As colunas, em forma de árvores, são depois divididas em ramos na zona do capitel. Esta estrutura sustenta as abóbadas hiperbolóides, entrelaçadas umas nas outras. Como um campo de folhas visto de baixo para cima. Ou uma chuva de estrelas que não nos cai na cabeça.

O efeito produzido aumenta pelo facto de a estrutura permitir a entrada de mais luz que uma catedral gótica. Essa era uma preocupação central para Gaudí e um dos efeitos mais notórios para o visitante que, a partir de hoje, entre na Sagrada Família.

Os vitrais ajudam a essa luminosidade intensa, que poderá chocar olhares mais resguardados. Também aqui a ideia de universalidade que Gaudí quis imprimir ao seu projecto está concretizado simbolicamente nos desenhos de Joan Vila-Grau: cada um dos vitrais (tal como acontece com as colunas) é dedicado às dioceses católicas da Catalunha, de Espanha e do mundo. No caso dos vitrais da abside, estes remetem para as Antífonas do Ó, uma oração tradicional do tempo antes do Natal, entretanto caída em desuso.

Além de evocar a presença católica no mundo inteiro, as 52 colunas simbolizam também cada domingo do ano e o seu significado litúrgico: o tempo do Advento e Quaresma estão na abside, o da Páscoa no transepto. É toda uma floresta simbólica, que leva o seu tempo a descobrir e que faz ressoar os últimos versículos do livro bíblico do Apocalipse: “No meio da praça da cidade e nas margens do rio está a Árvore da Vida que produz doze colheitas de frutos; em cada mês o seu fruto, e as folhas da árvore servem de medicamento para as nações.”

Raiar o panteísmo

Na Sagrada Família, multiplicam-se gruas, limpezas, movimentações de pedras. O estaleiro em que vive este templo iniciado há 120 anos converteu-se, nas últimas semanas, numa gigantesca operação de limpeza do interior. Quando se sobe, pelo ascensor, a uma das torres, ficamos a 75 metros do solo. Em baixo, vemos já os pilares onde nascerão as quatro novas torres dos apóstolos.

A Sagrada Família é um estaleiro gigantesco que sobe da terra para o céu. Além das oito torres já construídas, faltam mais dez, incluindo a grande torre de 170 metros de altura, que simbolizará Jesus Cristo. Eloi Aran Sala, arquitecto, ilustrador, teólogo e um dos comentadores do sítio catalunyareligio.cat, explica que a simbologia religiosa utilizada por Gaudí “raiava o panteísmo”.

Por isso, a Casa Batló, no Passeig de Gràcia, a menos de dois quilómetros da Sagrada Família, culmina com a cruz como se fosse um minarete e mostra um São Jorge, patrono da Catalunha, combatendo o dragão. Por isso ainda, a Casa Millá, também no Passeig de Gràcia, foi concebida como altar de uma grande imagem da Virgem Maria — que acabaria por não ser colocada por causa das lutas políticas e religiosas em Barcelona. “O que Gaudí faz é uma espécie de rosário urbano. O crente podia sair de casa, cruzando-se com coisas que lhe falavam da sua fé espalhadas pela cidade.”

O templo da Sagrada Família também assume essa característica, ao ser “encaixado na malha urbana”. A isso, não era alheio o seu programa inicial. “A ideia de um templo expiatório, mais do que falar de sacrifício, expressava a doação de Gaudí. Não como masoquismo, mas como uma entrega até às últimas consequências. Expressa uma identificação muito grande entre o que ele vivia e o que fazia na arquitectura”, diz Eloi Aran.

Este teólogo, ex-jesuíta, admite a dificuldade de uma igreja com uma linguagem arquitectónica tão marcada na cidade contemporânea. “A paróquia vem de um esquema rural. Na cidade mais individualista, não é fácil mostrar uma identidade comunitária e contracultural. Tornar visível uma identidade coloca em questão outras identidades.”

Há um debate a fazer, afirma Eloi Aran, sobre a “desorientação do espaço religioso” contemporâneo. “Desde o Concílio Vaticano II [1962-65], insiste-se mais no que é nuclear na Igreja — as pessoas e a comunidade — e menos no que é apologético.” Gaudí faz algo entre o apologético — não hesita em colocar imagens nas fachadas da Sagrada Família, por exemplo — e a expressão das funções da comunidade cristã: a liturgia, o anúncio e o serviço.

Usar mais o corpo

Portuguesa, a viver em Barcelona há 11 anos, Inês Castel-Branco, 33 anos, é autora do livro Camins Efímers cap a l’Etern (Caminhos efémeros para o eterno), galardoado com o Pémio Joan Maragall em 2003, onde aborda as “intersecções entre liturgia e arte”, como diz o subtítulo. Na Sagrada Família como em muitas outras igrejas, continua a ver-se a opção pelo modelo de igreja tradicional: “É como uma catedral gótica: Deus no alto, nós aqui em baixo. Não é o que hoje em dia nos faz mais próximos e nos ajuda a relacionar uns com os outros. E se a parte plástica é fantástica, a planta não tem novidade”: cruz latina e bancos dispostos como num teatro ou cinema. “Estamos a fazer como sempre, a criar grandes distâncias entre o altar e o resto.” Para esta arquitecta, falta preencher a liturgia com “sensualidade”, com aquilo que integra o quotidiano das pessoas: “Elementos efémeros ligados com os tempos litúrgicos, velas, crianças, panos, cantos, o uso da expressão corporal...”

Dá o exemplo da liturgia de Taizé, a comunidade monástica de França que junta católicos e protestantes. Ali, o canto, as velas, a iconografia, os espaços são pensados para “colocar as pessoas em relação”. E da liturgia da Páscoa, em que a utilização da água ou do fogo “ajudam a perceber o efémero”. Também o uso do corpo na oração deveria ser recuperado, defende, tornando as pessoas “mais participantes”. “Quando vemos o que fazem os artistas contemporâneos, percebe-se que eles estão a anos-luz do que faz a Igreja.”

A arquitecta também concorda com os críticos e vê alguma dificuldade na “continuação” da obra de Gaudí.

Polémicas e gosto dos sucessores

As polémicas acompanham a Sagrada Família desde o início. Não será estranho ao facto a própria forma como nasceu a ideia: em 1874, a Associação de Devotos de São José, presidida pelo livreiro Josep Maria Bocabella, decidiu promover a construção de um templo expiatório. Convidou o arquitecto Francisco de Paula del Villar para conceber o edifício. Villar ainda desenha a cripta, mas desavenças profundas levam-no a abandonar o projecto um ano e meio depois.

Em 1883, o jovem Antoni Gaudí, nascido em Reus em 1852, é convidado para continuar a obra. A ela se dedicará nos restantes 43 anos da sua vida. Trabalhando sempre num processo de experimentação-execução, Gaudí apenas deixa esboços, desenhos e uma maqueta quando morre em 1926.

Com a Guerra Civil espanhola e a II Guerra Mundial, a construção sofre interrupções várias. Juntam-se a destruição de grande parte dos desenhos de Gaudí para o templo e as polémicas sobre a continuação ou não da obra.

O próprio Gaudí não ignora que nada será pacífico. Jean-Paul Hernandéz conta, no livro Antoni Gaudí: la Palabra en la Piedra, que o arquitecto afirmara pouco antes de morrer: “Sei bem que o gosto pessoal dos meus sucessores condicionará os trabalhos da Sagrada Família. Mas isso não me desagrada. Creio que será para benefício do templo. […] Os grandes templos nunca foram a obra de um só arquitecto.”

Muitas das críticas surgidas aos continuadores de Gaudí dizem que o processo é todo ao contrário do que ele pretendia e que o seu legado não é respeitado. David Mackay defende: “O problema radica em que Gaudí desenhou a estrutura em pedra mas não viveu o suficiente para resolver os movimentos horizontais. Ignorou-se a linha de investigação de Gaudí, que se observa em outras das suas obras.”

Jordi Bonet, responsável actual das obras, confirma que Gaudí sempre defendeu a ideia de outros continuarem o seu trabalho. O pai de Bonet, também arquitecto, era amigo do autor da Sagrada Família. Mais: “Admirava e venerava” a sua obra. Um argumento adicional para Bonet defender as opções, técnicas e formais, que têm sido tomadas: “Temos trabalhado com toda a consciência para cumprir as ideias de Gaudí.”

Na zona do altar, por exemplo, o arquitecto “queria que estivesse escrito o hino do Glória”. No resto, Bonet acha que também conseguiu interpretar a linguagem simbólica de Gaudí: “Ele pensa o conjunto para que seja expressão e explicação da mensagem de Jesus Cristo.” O que se traduz na “alegria da criação” da Fachada do Nascimento, onde estão representadas escultoricamente as cenas das narrativas da infância de Jesus. Mas também na dor e no dramatismo das esculturas de Subirachs na Fachada da Paixão.

O projecto para a Fachada da Glória, que ainda falta construir e será a entrada principal, vai ser hoje revelado num enorme painel exibido no local onde ficará. “É para dizer que o mais necessário é o amor e o respeito de uns pelos outros.” A fachada representará artisticamente as obras de misericórdia (dar de comer a quem tem fome, vestir os nus, dar de beber a quem tem sede…) e a oração do Pai-Nosso como “símbolo da fraternidade universal”, diz Bonet.

O simbolismo não é esotérico ou indecifrável. Por isso há tantas palavras “para que as pessoas compreendam”, sejam crentes ou não crentes, o que Gaudí queria dizer. Nas torres-campanário, lê-se “Hossana”, “Excelsis”, “Sanctus”… Nas portas da Paixão, Subirachs seguiu a mesma intuição e colocou o trecho bíblico que conta o julgamento de Jesus.

Bonet diz que pôde comprovar “a genialidade” do criador da Sagrada Família: “Ele tentava superar o gótico, algo que nunca tinha sido feito em arquitectura.”

Inspirando-se na natureza e nas suas formas — folhas, árvores, lagartos, serpentes, tudo lhe serve para projectar edifícios —, Gaudí fez dela a sua linha mestra, defende Bonet. Quem veja de longe a Sagrada Família, diz, pode pensar que se trata de um “parque temático”. Mas ela é uma igreja que convida “à paz e ao amor”.

Impossível ver tudo em pouco tempo. A abside que remete para o culto mariano (dali nascerá a torre dedicada à Virgem), o claustro que encerra dentro de si a igreja e a nave central, a Árvore da Vida que culmina a Fachada do Nascimento, as torres cujos pináculos em silhueta são, por excelência, o símbolo do templo.

As torres, pode dizer-se, sintetizam a profusão simbólica da Sagrada Família: frutos, árvores, folhas, animais, formas geométricas, cores, tudo nelas se conjuga para resumir o cristianismo. Neste caso, a partir das figuras dos doze apóstolos, dos quatro evangelistas, da Virgem Maria e de Jesus Cristo.

E quem faz a caridade?

Luís Bonet, 79 anos, irmão do arquitecto que dirige a obra, é o actual pároco da Sagrada Família. Há 17 anos que ali está e também já deu o seu contributo para a nave central que hoje será inaugurada pelo Papa. Foi ele que seleccionou os textos bíblicos que Gaudí pedia para as 52 colunas de pedra que sustentam a nave.

Convida-nos a sentar e assinala a raridade dos três cadeirões, em madeira preta, desenhados por Gaudí. Neles estão inscritos os nomes Jesus, Maria, Josep, bem como o anagrama de Cristo (o P e o X cruzados), o alfa e o ómega. Nada escapava à devoção religiosa do arquitecto.

O padre Bonet diz que a sua preocupação é outra para lá da arquitectura: “Há pouco tempo, a paróquia escreveu uma carta ao Papa, a agradecer-lhe ele vir e a dizer que nós somos a alma do lugar. Outros põem pedras, mas quem faz a caridade?”

Neste lugar de romaria turística, há então espaço para outras experiências? A cripta, desenhada e construída quase toda por Francisco del Villar, é um lugar mais tranquilo e pequeno, onde se celebra actualmente a missa da paróquia.

“Aqui encontro uma comunidade viva, grupos, serviços. Eu quis ser padre para estar ao serviço do povo. A minha posição aqui foi ligar a arte e a catequese à dimensão universal, fazer viver a liturgia e a caridade relacionando-as com o templo e com a sua dimensão artística.”

O que se faz então na Sagrada Família, além de receber os turistas? A paróquia oferece alimentação e apoio a muitos necessitados, imigrantes ou desempregados. “Tanto os que têm documentação como os que não têm, não se faz nenhum exame de religião.” Há meia centena de imigrantes ou precários que diariamente aqui acorrem, “um pequeno serviço”, relativiza o padre Bonet.

Também há cursos de orientação sócio-laboral. Num país onde o desemprego está na casa dos 20 por cento, o curso, de oito dias, é uma pequena ajuda para quem quer encontrar trabalho. Sejam de origem magrebina, do Leste europeu ou portugueses, diz.

Luís Bonet, divertido, sempre de sorriso aberto, é um padre que se sente bem “onde quer que esteja”. Quando se descobre na praia a ver a lua ou o mar, diz que contempla o que vê. Tal como faz com “as pessoas na cidade”. Por isso, também com a Sagrada Família, onde gosta de fazer falar as pedras. E de explicar às pessoas a “força da dor” da Fachada da Paixão, a “doçura” do Nascimento. “Aproveito sempre as imagens, os símbolos, em relação com a realidade.”

A Jerusalém celeste

Rosário Reiné, que há 21 anos vende miniaturas da Sagrada Família e outros souvenirs nas ruas que ladeiam a nova basílica, diz que “já era tempo de acabar a obra”. Mas não irá ver por dentro o que está feito. “Pagar 12 euros, eu?” Os tempos não estão para turismo, mesmo que seja à porta da sua pequena barraca.

Entrar ou não entrar na Sagrada Família não é a única questão que divide os barceloneses. O túnel do AVE, a alta velocidade ferroviária espanhola, passará ali apenas a um metro da Fachada da Glória e a 35 metros abaixo do solo. O tema foi objecto de polémica nos últimos tempos e, apesar de decidida, a passagem do túnel não é pacífica. Com as duas linhas de metro que já circundam o templo, há quem tema que a Sagrada Família fique em perigo.

A obra poderá agora estar concluída, com todas as torres e a Fachada da Glória, daqui a 15 anos, para o centenário da morte de Gaudí — ou talvez um pouco mais. Mas, para o futuro, David Mackay propõe algo de radical: “A parte que falta da Fachada da Glória deveria suspender-se por um período de 100 anos para dar tempo a uma reflexão profunda e a que outra geração decida.”

Ignasi Moreto, responsável da Fragmenta, editora dedicada a livros de teologia e cultura religiosa, sente a catedral de Santa Maria do Mar, de Barcelona, como sua, ao contrário do que acontece com a Sagrada Família. “Desde pequeno, a minha avó levava-me à catedral a ver o Cristo de Lepanto, os quadros, as imagens. A Sagrada Família é turística, para turistas, não foi apropriada pela cidade.”

Apesar das dúvidas que tem, o arquitecto e teólogo Eloi Aran olha para o templo de Gaudí como a catedral do mar do século XXI. Que está também a ser “construída pelo povo”. O próprio arquitecto, recorda, tinha uma dimensão social importante na sua vida, tendo apoiado cooperativas de operários.

“A beleza do edifício não está nos materiais sumptuosos, mas na utilização de materiais simples.” A pedra rejeitada, uma imagem bíblica para falar de Jesus Cristo, “é o que se encontra na Sagrada Família”, onde as gárgulas convertem os monstros em caracóis e as gentes do povo são rostos para escultura.

Eloi Aran lê a obra de Gaudí como estando “a meio caminho entre o classicismo e a modernidade”, através da utilização de factores como a luz e a imaterialidade. “O homem moderno não é capaz de criar um espaço que o leve a ajoelhar-se. O que Gaudí faz para suscitar este sentimento é ir mais atrás e dar-lhe um estilo simbólico.”

O simbólico é de tal grandeza e riqueza que “não é possível apreender tudo”, admite o teólogo-arquitecto.

Armand Puig i Tárrech, decano da Faculdade de Teologia de Barcelona e biblista, publicou há duas semanas o livro La Sagrada Família Segons Gaudí — Comprendre un Símbol. Para ele, a chave de interpretação de todo o edifício é o livro bíblico do Apocalipse, onde se fala da visão da Jerusalém celeste.

“O sonho de Gaudí é o sonho de todos os construtores de catedrais: representar a Jerusalém celestial, a cidade nova e santa, ‘que desce do céu, vinda de Deus, vestida como uma noiva que se enfeita para o seu esposo’. Por isso a Sagrada Família é a busca constante de beleza e harmonia, de elegância e claridade.”

Na homilia que fará na nova nave central da Sagrada Família, o Papa deverá referir-se ao tema da beleza, que lhe é tão caro e que ele vê como uma das possibilidades de falar do cristianismo nos tempos que correm. Em Novembro do ano passado, no encontro com artistas de todo o mundo, na Capela Sistina, Bento XVI afirmava: “A fé não retira nada ao vosso génio, à vossa arte, pelo contrário, ela exalta-o e alimenta-o.” Ou, como escrevia Dostoievski, também citado por Bento XVI na ocasião: “A humanidade pode viver sem a ciência, pode viver sem pão, mas sem a beleza não poderia viver nunca, porque não teríamos mais nada para fazer no mundo.”

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