Os universitários que preparam o futuro da Síria em Portugal

Hasan, Nour, Maria, Amira, Mahmoud, Heba, chegaram a Portugal depois de verem o seu país desabar. É no Porto, em Évora, em Guimarães ou Lisboa que voltam a concentrar-se nos estudos.

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As histórias deles não são muito diferentes. Nasceram e cresceram num país onde a liberdade não é total, onde se sabe que o regime é corrupto e os opositores perseguidos, mas onde a vida até pode ser boa. Os seus pais têm trabalho e eles iam à escola, tinham amigos e viviam em cidades com muita história e muita vida. Gostavam dos seus vizinhos, mesmo se a lei das probabilidades ditasse que um deles fosse informador, não faz mal, desde que não se falasse de política em público. O país deles é bastante aberto e a educação tem qualidade, ao contrário de outros na região; até viviam em cidades cosmopolitas, gostavam de receber.

Um dia, revoltaram-se e abriram-se as portas do inferno. “No princípio, acreditei na revolução. Nós somos um povo bom, um país com tudo mas que, por causa da corrupção, continua pobre. Quem é que não quer mais liberdade e menos corrupção?”, pergunta Hasan. “Depois, apareceram as armas e começaram a destruir instalações do Governo e eu já não gostei. Deixou de ser uma revolução e passou a ser uma guerra. São todos criminosos, nenhum lado é melhor do que o outro”, diz Hasan. “Qual revolução? Se um membro da oposição mata uma criança, onde é que está a revolução? Vai dizer que o fez porque os outros fizeram primeiro?”, questiona Nour. Na Síria de hoje, é muito difícil não ter um lado: “Se não estamos com o Governo, somos inimigos, com os rebeldes é o mesmo, ‘se não estás connosco, estás contra nós’”, continua Hasan. “É um grande problema, ninguém aceita o outro.”

Hasan, 23 anos (quase 24); Nour, 22; Maria, 25; Amira, 27; Mahmoud, 25 (este é o único nome não verdadeiro), Heba, “27 anos completos” — acaba de fazer 28, ainda não os sente —, chegaram a Portugal depois de verem o seu país desabar. É no Porto, em Évora, em Guimarães ou Lisboa que tentam recomeçar, voltar a concentrar-se nos estudos, deixar o horror para trás.

Em Março vieram 43, há uma semana chegaram mais 22. São todos bolseiros da Plataforma Global de Assistência Académica a Estudantes Sírios, um programa internacional pensado e lançado por Jorge Sampaio. Uma ideia que surgiu em 2012, como explicou o ex-Presidente à Revista 2, mas que demorou a pôr em prática. “Foi muito fácil apresentar o projecto às universidades, as universidades portuguesas são cada vez mais internacionais”, diz. Muito mais difícil foi conseguir apoios financeiros. “Temos centenas de vagas, oferecidas pelas universidades, com as propinas pagas, à espera para serem ocupadas por alunos, mas depois falta tudo o resto, o alojamento, as viagens, as bolsas.”

Com a Síria de novo sem sair das notícias, os últimos meses têm sido encorajadores para o programa. “Nos Estados Unidos, os nossos parceiros estão a mexer-se muito”, diz Sampaio, ao mesmo tempo que novos países, como a Bélgica, acabam de receber os seus primeiros estudantes universitários. Líbano, Turquia, Egipto e Curdistão iraquiano já eram membros da Plataforma.

Hasan descreve como só no Porto foi capaz de deixar de pensar permanentemente em coisas terríveis e voltar a sentir “que há esperança”. Nour diz que “renasceu” desde que chegou a Évora. Heba fala “na oportunidade de uma vida”. Amira agradece a possibilidade de estudar e está determinada em acabar o mestrado de Psicologia em dois anos.

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Adriano Miranda

Mahmoud, que nasceu em Deir Ezzor, no Norte, lembra quando estava “a dar em doido” em Damasco, sempre a pensar na revolução. Depois, a frustração de conseguir uma bolsa na Holanda e viajar até Beirute para pedir um visto e ouvir que esse nunca lhe seria dado: “A certa altura, comecei a pensar tentar o mar, chegar à Europa de barco.” Quando recebeu o email a confirmar que tinha conseguido entrar no programa, não podia acreditar e teve de pedir a um amigo que o lesse em voz alta.

Maria foi colega de Hasan em Damasco e estava na Turquia a tentar um visto para se candidatar a uma universidade na Itália quando soube que vinha. Conta que em Guimarães se sente “tão segura” que às vezes sai à rua às quatro da manhã. “É tão bom, tinha saudades desta sensação, estive noutros países do Médio Oriente e não me senti assim, instalada, não em termos materiais, instalada no interior.” Guimarães já é casa. “Na Páscoa e no Verão, fui visitar o meu pai e o meu irmão à Finlândia e tive saudades dos sítios de que gosto, das muralhas, da praça do Toral.” Acabada de chegar de férias, marcou o encontro para um café nesta praça central da cidade. “Vinha a correr da universidade, a tentar chegar antes de vocês, para aproveitar.”

“És feliz aqui?” e este “aqui” podia ser Guimarães ou Porto, mas é Lisboa: Mahmoud hesita por uns momentos, afinal acaba de nos descrever uma vida cheia, dividida entre um mestrado em Ciências Políticas na Universidade Católica, debates acesos com os professores, os novos amigos (metade portugueses, metade estrangeiros vindos do mundo inteiro). Mahmoud gosta de conhecer gente de fora e gosta que o conheçam a ele, um sírio normal, como tantos, tão diferente do que tantos imaginam. “Não. Não posso dizer que seja feliz. Estou contente.”

Para Mahmoud, talvez seja mais difícil do que para outros. Ele estuda política, escreve dissertações que tentam explicar o que está a passar-se no seu país, vem de uma família “profundamente anti-Baas” (o partido de Bashar al-Assad, no poder) e acreditou mesmo na revolução. Ainda acredita. “Uma revolução implica mortes, coisas terríveis”, diz. A Síria teve azar. “A nossa revolução aconteceu na altura errada, quando [Vladimir] Putin queria afirmar-se czar, mostrar o seu poder. E a oposição síria não aprendeu lições, deixou-se ir na direcção do Ocidente e agora, especialmente depois da Crimeia [região da Ucrânia que votou para integrar a Rússia], o mundo está a aprender a lição, como é importante saber escolher os aliados certos.”

Mahmoud estuda a sua própria vida e descreve como “o regime sírio trabalhou para estrangular qualquer movimento que visasse criar uma mentalidade colectivista”. Fala de George Orwell e do protagonista de 1984, “o herói que quando se tenta revoltar descobre que está completamente sozinho”. Assad, o regime que Bashar herdou do pai, “queria que nós nos sentíssemos completamente sozinhos quando pensássemos em rebelião”, afirma. “As últimas estatísticas na Síria mostram que um em cada três sírios é um informador. Nunca se confia em ninguém na Síria.”

Sem nunca ter acreditado nas promessas de abertura de Bashar, que herdou o poder do pai em 2000, Mahmoud diz que só com a revolução percebeu como o regime é inteligente. “É extraordinário. Tive de admitir que estamos a enfrentar o ditador mais esperto e terrível do século XXI, especialmente na capacidade que teve para escolher os aliados certos, a Rússia, a China, o Irão. Não é ele que é esperto, é o regime e isso é legado do pai dele.”

Mahmoud já pensava nisto tudo quando estava em Damasco. Mas de outra maneira. A desesperar. “Não conseguia sair de casa nem deixar de pensar em tudo o que estava a acontecer.” Depois, veio para Lisboa e não deixou de pensar, mas voltou a viver e os pensamentos passaram a ser mais límpidos, menos cheios de sangue e de morte.

Hasan conta uma história diferente, mas que acaba por não ser assim tão distante. Precisava de se afastar, admite, e nunca é fácil a um sírio admitir isso. Não era só prosseguir os estudos, era poder esvaziar a cabeça para a voltar a encher com outros pensamentos. Demorou, conta. Não deixa de pensar na família, em Latakia, uma cidade costeira que ainda é segura, controlada e conotada com o regime. Não esquece os amigos com quem mantém contacto, até sabe que alguns estão ocupados em projectos para a reconstrução que o regime já promove nas universidades do país que controla, por entre a guerra e a morte.

Chegar ao Porto foi futuro e passado. “Quando cheguei, lembrei-me dos sírios, de como nós éramos antes, quando alguém estranho chega tratamos toda a gente bem. Aqui foi assim, talvez mais ainda”, diz. Hasan vive numa residência e não a trocava por nada (alguns estudantes do programa partilham apartamentos): Os “vizinhos, todos portugueses”, fizeram-no sentir-se em casa, ajudaram-no a instalar-se e apresentaram-lhe “a cidade, a comida, as francesinhas”. Agora, também gosta de passear sozinho. “Estou apaixonado pelo Porto. É uma cidade muito, muito bonita, não consigo descrevê-la de outra forma. As pontes são maravilhosas.”

Hasan nunca tinha conhecido outras cidades a não ser as sírias: nasceu em Wadi La’aun, passsou a infância em Latakia e mudou-se com a família para Damasco. Foi aqui que ficou sozinho para acabar o curso de Arquitectura, quando os pais regressaram a Latakia e levaram as irmãs por ser mais seguro. “Houve alturas em que pensávamos que estávamos a sair de casa e podíamos não voltar. Eu tive de faltar a dois testes, sem dizer aos meus pais para eles não ficarem preocupados”, recorda. “A minha faculdade foi atingida, um rocket caiu na cafetaria e dez estudantes morreram. Mas no dia seguinte nós voltámos às aulas. Não tínhamos medo. Queríamos viver e a vida não pode parar.”

É assim com muitos sírios, é assim porque não pode ser de outra forma, os dias seguem-se uns aos outros e isso “é bom e mau”. Hasan assustou-se quando sentiu que habituar-se à guerra e à morte era perder um bocadinho dele próprio. “Quando vi o primeiro bombardeamento na televisão, não consegui dormir, depois passou a ser só mais um. Parece que perdemos a nossa humanidade, como se uma parte de nós tivesse sido levada e nós não sabíamos como”, descreve. Vir para o Porto mudou tudo. “Tinha a impressão de que nada importava. E durante um período comecei a seguir as notícias e só conseguia falar de política e de guerra. Estava cansado de mim. Quando cheguei aqui, senti esperança, senti que ainda há alguma coisa boa nesta vida.”

Hasan fala muito de Maria, que lhe falou da bolsa e assim fez com que acabassem os dois em Portugal. Depois do Porto, é Guimarães, onde vive Maria, a cidade que Hasan melhor conhece. Maria também já o visitou. E também fala muito de Hasan. Recorda como a confirmação para a bolsa chegou tão em cima da hora que nem teve tempo para ir a Damasco despedir-se da família. “Foi tudo a correr, comprar algumas coisas e ir para Beirute. Estava a sentir-me muito perdida. Depois, vi o Hasan no aeroporto e corri para o abraçar.”

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Adriano Miranda

No primeiro contacto, Maria e Amira, que entretanto também já são amigas, parecem ambas muito reservadas. Mas não demoram a mostrar que têm riso fácil e assim que se sentem confortáveis é difícil pará-las. Com Maria foi assim na conversa, foi assim nas fotografias. Com Amira, a conversa começou ao final do dia, a uma hora em que ainda parecia normal pedir bolos e chá no café Arcádia da Praça Giraldo, em Évora, mas acabou já toda a gente deveria ter jantado.

A experiência de uma e de outra é que está a ser muito diferente. Enquanto o hijab (lenço islâmico) de Maria a torna reconhecível e isso é bom, fá-la sentir-se incluída, o de Amira faz dela um elemento estranho aos olhos de alguns habitantes de Évora — olhar, quase todos olham, o pior foi quando alguns fizeram mais do que isso, tocando-lhe no lenço ou mesmo dizendo-lhe de forma nada simpática que não devia estar ali.

Com Maria foi exactamente ao contrário. “Quando nós aterrámos em Lisboa, houve uma televisão que me entrevistou e eu disse que vinha fazer um mestrado na Universidade do Minho. Quando cheguei, houve pessoas que vieram ter comigo a dizer que me tinham visto e sabiam que eu ia chegar. Foi bom”, conta. “As pessoas reparam em mim, por causa do hijab também, e falam comigo, pessoas que trabalham no supermercado ou no centro comercial, ficámos amigos por isso.”

Maria gosta de estar numa cidade que não é enorme, daquelas “onde ninguém memoriza a tua cara”. Aqui, as pessoas conhecem-na e querem fazê-la sentir-se bem. “Há gente que me oferece coisas por saberem que eu sou de fora. Um dia passei algumas horas num café com um amigo e o senhor ofereceu-nos uma chávena, para nos sentirmos bem-vindos.”

Não tem sido esse o quotidiano de Amira, que chegou a Évora com o mesmo coração aberto com que antes chegara a Itália, país onde viveu uma boa temporada, em Roma, onde sendo muçulmana “ia à missa e era tudo normal”. Agora, pela primeira vez, sente que usa um lenço na cabeça e isso tem um peso. “Eu não sabia que o mundo também podia ser assim”, diz, depois de enumerar vários episódios desagradáveis.

O primeiro dia de aulas, no seu mestrado em Psicologia, não foi um bom auspício. A aula era de Introdução aos Estudos Sociais e o professor pediu-lhe que se apresentasse — a si e ao seu lenço. “Eu não percebi. Que me perguntasse sobre mim, a minha cultura, de onde venho, seria normal, mas não, só falava do lenço.” O professor tinha estado na Arábia Saudita, país infinitamente conservador, tão diferente da Síria, e julgou que sabia tudo sobre o mundo árabe e muçulmano. A aula acabou por se transformar numa espécie de tribunal, com os alunos a fazerem perguntas sem sentido. “Porque é que se eu for ao teu país a minha mulher tem de usar lenço?”, perguntou-lhe um colega. Não tem.

Durante alguns meses, Amira foi a única pessoa em Évora a usar hijab e isso não ajudou. Mas não desistiu de Évora, ainda que tenha acabado a fazer vida da residência para a universidade e da universidade para a residência. Mesmo assim, é no café Arcádia que combina o encontro e na praça por onde toda a cidade passa que se deixa fotografar. Quer manter o coração aberto e ainda espera que lhe perguntem educadamente quem é, de onde vem, o que tem para contar.

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Nuno Ferreira Santos

Há sinais de que tudo pode melhorar. “No Verão, passei muito tempo a estudar numa das bibliotecas da universidade. Estive uma semana sem ir e quando voltei a senhora que lá trabalha veio ter comigo e ofereceu-me um chocolate, estava preocupada por eu ter desaparecido”, descreve. Aconteceu o mesmo quando as aulas de Português recomeçaram, em Setembro. “A professora veio ao pé de mim e abraçou-me, contente por me ter de volta. Foi um abraço a sério, eu senti o calor.”

A Évora de Amira não parece a Évora de Nour, e eles até vivem na mesma residência. Amira desconfia que se Nour usasse uma barba comprida a história que teria para contar podia ser outra. Mas Nour usa barba quase rasa e não podia estar a ter uma experiência melhor. Em Évora, ganhou uma nova família e faz questão de ser entrevistado rodeado por quase todos os seus membros, estudantes do Porto, do Algarve, de Castelo Branco ou da Madeira, amigos que o levaram a conhecer as suas casas no Verão.

Nour chegou frágil, como todos, talvez mais do que alguns. Não veio da Síria, da sua cidade, Alepo, mas de Ancara, na Turquia, para onde tinha ido viver com o irmão mais novo para ficarem os dois em segurança. Primeiro tentou bolsas de estudo, vistos para sair de lá, a ele só lhe faltava um ano de Arquitectura. Depois, a realidade impôs-se e começou a trabalhar para o irmão poder estudar. Acabou a dividir casa com uma jovem da Geórgia.

A certa altura ficou doente, deprimido, esteve semanas no hospital. Já em casa, continuava sem ver os emails. Quando finalmente ganhou coragem para o fazer, descobriu que podia vir para Portugal. “Esquece, tens de ir”, disse-lhe o irmão, com Nour a não querer deixá-lo para trás. “‘Vai’, disse-me a minha mãe ao telefone, enquanto pensava ‘não vás, não vás para longe’.”

No aeroporto, o irmão pediu-lhe desculpa “por todas as vezes que tinha sido chato e arranjado problemas”. Nour veio, em lágrimas, mas sabe que a amiga da Geórgia ficou a tomar conta do irmão. Porque há pessoas boas, solidárias, como as que encontrou em Évora e se sentam à nossa volta, na sala de estar da residência. São muitos, estão no sofá, nos poufs, à mesa, está lá o Hernâni, com quem passou uma semana no Algarve, a Cátia, uma das primeiras amigas que fez, o André, responsável pela residência e o primeiro estudante que conheceu, a Teresa, que estuda Psicologia e é de Beja — Nour tem várias amigas a estudar Psicologia e brinca a dizer que lhes falta muito para estarem preparadas; afinal, quando falam com ele, são elas que choram. De repente, chega Rodrigo, “este é o meu melhor amigo”, diz Nour. “BFF” (best friends forever), acrescenta Teresa, a rir.

“Agora estou feliz. Quero estar em Portugal”, diz Nour, como se ainda não tivéssemos percebido. Entretanto, o jovem até já viu concretizado um sonho, “o sonho” que tinha desde que ouviu pela primeira vez o nome de Siza Vieira numa aula na Síria. No Verão, Nour pôde visitar o atelier do arquitecto, durante o estágio que fez na Câmara do Porto. Mas o sonho concretizou-se antes, quando soube que Siza ia dar uma conferência em Évora. “Cheguei duas horas antes, para ter a certeza de que tinha um lugar”, conta. Depois, no fim da apresentação, queria dizer alguma coisa mas não sabia se Siza falava inglês, teve vergonha e hesitou, alguém lhe empurrou o braço para cima e ele lá falou. “Disse-lhe que ele era o único arquitecto que não pára de me surpreender. O único que quando eu penso que já o conheço faz qualquer coisa que me deixa a achar que afinal não o percebi. Ele ouviu e depois disse-me: ‘Agora, anda aqui e repete lá isso ao meu lado’.” Há fotografias desse momento, Nour de pé, ao lado de Siza, a falar-lhe quase ao ouvido.

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Nuno Ferreira SAntos

Como Nour, Heba também tem uma família portuguesa, mas isso não aconteceu quando chegou, em Março. Há duas semanas, mudou-se para casa de Maria Ana, Rui, Maddy (Madalena, nove anos) e Leo (Leonor, 11 anos), em Telheiras, e agora tem mãe, pai, irmãs e até avó portuguesa. “Não substitui a minha família, mas é muito bom, eles são incríveis”, conta. Na porta do quarto de Heba, há uma folha A4 colada onde Maddy desenhou o seu nome, cada letra com cores e formas diferentes, riscas, bolinhas, quadrados. Lá dentro está um roupeiro às cores — “era das miúdas e eles tinham medo que fosse demasiado baixo, mas eu sou pequena, as minhas coisas cabem perfeitamente lá dentro”.

Heba estuda Finanças, está a fazer um mestrado, e Maria Ana imagina-a como a próxima ministra. “Ela disse ao país todo que eu vou ser a próxima ministra [das Finanças]. Nem podia acreditar, disse-o assim, de forma mesmo assertiva na televisão”, conta à mesa, a falar da entrevista que a família deu à SIC Notícias. “Avó” foi das primeiras palavras que Heba decorou em português e é por isso que Maria Ana tem outras memórias da entrevista. “Chegámos a casa, a minha mãe tinha ficado a tomar conta das miúdas, e só dizia: ‘Ela chamou-me avó’.”

O jantar é um jantar de família, de uma família como as outras, onde o pai às vezes se atrasa e as filhas vão pondo a mesa e começam a comer a sopa. “Eu ajudo pouco, sinto-me mal. Mas faço as saladas”, diz Heba, enquanto leva pratos e copos para a sala, com as mais pequenas. As duas estudam na Escola Alemã, Leo já fala inglês, Maddy vai percebendo. “É fácil comunicar com ela. Faz imensas expressões e eu percebo sempre o que ela quer dizer”, conta Heba.

A família, assim, só existe há duas semanas, com um jantar anterior para se conhecerem. Mas não fosse a mala de Heba, ainda meia por desfazer, e dir-se-ia que esta família já está junta há mais tempo. Ainda têm muito para aprender uns sobre os outros, mas já tomam decisões em conjunto. A da Coca-cola, por exemplo. Em casa, só Maria Ana e Heba gostam do refrigerante. Como não é a bebida mais saudável do mundo, tomaram uma decisão: “Agora só bebemos uma por semana e dividimos entre as duas”, conta Maria Ana. “Com gelo e tudo”, diz Heba.

Há muitos motivos para rir ao jantar. Como as idas de Heba ao dentista, uma delas horas antes, para desvitalizar um dente, uma consulta que a fez perder a aula de Português. É que Heba vai ao dentista à Azambuja, a 50 quilómetros de Lisboa e onde a Plataforma encontrou dentistas que trabalham pro bono. “Já desisti de dizer às pessoas que vou ao dentista à Azambuja, as caras que fazem. Nem tive coragem de tentar entrar na aula, cheguei 45 minutos atrasada. Ia dizer o quê?”

Maria Ana e Rui, uma jurista e um advogado (foram colegas na universidade, mas só começaram a namorar mais tarde) já tinham tido estudantes estrangeiras em casa, europeias e por períodos mais curtos. “Um ano? Eu fiquei preocupada com eles, a pensar se teriam noção do que isso era. É um compromisso enorme, e uma grande coragem”, diz Heba. Ainda falta muito para esta família ser mais família. Mas sentem-se bem na companhia uns dos outros e isso nota-se.

Quando os conhecemos, há uma semana, na recepção aos novos estudantes sírios, Maria Ana contou que tinha planeado uma manhã de passeio em Sintra. “Depois, a Heba explicou-me que não podia, que tinha combinado ajudar o noivo [em Damasco] com uma candidatura a uma bolsa no estrangeiro. É quando percebemos que a realidade é abismalmente diferente e os nossos problemas são ridículos, como estarmos preocupados com o tempo”, diz Maria Ana. “Às vezes sinto qualquer coisa triste nela, mas depois passa rapidamente.”

Por causa da conversa com a Revista 2, que se prolongou bem para lá do jantar, já as pequenas dormiam, Heba não atendeu dois telefonemas do noivo. “Ele liga-me sempre que pode, para saber de mim. Sente-se sozinho, acho. Foi ele que me encorajou a concorrer a esta bolsa, ele não tentou porque não percebeu que podia, sendo sírio-palestiniano. Agora, sou eu que tento encorajá-lo a candidatar-se e ir estudar para a Alemanha. Em Damasco não tem nada.”

Heba tinha pensado que ia casar em Agosto deste ano. Como tantos sírios, teve de refazer os planos. Esta é a sua oportunidade e não a vai desperdiçar. “Foi uma bênção. Toda a gente nos pede vistos e documentos, num país onde nada funciona. Com a Plataforma, consegui vir e eles ajudaram-me a conseguir tudo.” Para além do noivo, tem saudades dos pais, do irmão que foi para a Turquia para escapar ao serviço militar, numa altura em que isso significava “morrer ou matar”, e do irmão mais novo, que ficou com os pais, ambos com mais de 60 anos e reformados, a mãe ex-engenheira, o pai ex-professor de Matemática. O mais novo decidiu estudar Direito, “estudar Direito num país sem lei, achámos todos que era uma escolha estranha”, conta.

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Daniel Rocha

“O meu pai levou-me a Beirute, ao aeroporto. Foi a primeira vez que o vi chorar. Agora, às vezes, chora outra vez, quando falamos ao telefone. Gostava de os poder tirar de lá, mas nem eu nem o meu irmão que está na Turquia temos condições para isso”, diz Heba. Agora, Heba tem de estudar, e está a gostar muito do seu mestrado no ISEG, com portugueses, alemães, brasileiros, italianos. Depois, quem sabe, pode sempre ser ministra das Finanças, aqui ou noutro país qualquer.

Todos deixaram gente para trás, um bocadinho de si próprios. Hasan diz que já estava habituado a não ver a família. “Nos últimos dois anos, quando fiquei sozinho em Damasco, só os visitei duas ou três vezes, as estradas não eram seguras”, lembra. O que não quer dizer que custe menos. “Eles dizem-me que estão bem e eu tenho de acreditar. Espero conseguir ir visitá-los à Síria no Verão.”

Maria tem duas irmãs e dois irmãos. Não conseguiu ir despedir-se da mãe nem do irmão mais novo nem da irmã, já casada e com dois filhos, mas voltou a poder ver o pai e o irmão mais velho, que já viviam na Finlândia antes da revolução. “Foi estranho ficarmos separados, eles deixaram de poder ir à Síria como costumavam fazer.” De quem parece sentir mais falta é mesmo dos sobrinhos, mas também é por eles que diz estar a estudar.

Tanto Hasan como Maria querem ajudar a reconstruir a Síria. Depois do curso de Arquitectura, ela seguiu para um mestrado que escolheu para ter as ferramentas “para reconstruir bem o país, com as fundações certas, com métodos modernos e sustentáveis”. Ele escolheu Planeamento Urbano, ainda está a fazer a parte lectiva do mestrado, mas já tem tudo pensado para a tese. “Vou tentar fazer um estudo de Damasco, do passado até agora, incluindo os lugares que foram destruídos pela guerra e os que já não eram adequados, como os bairros ilegais. Vou comparar alguns planos que já existem e tentar fazer um novo para os próximos 25 anos”, descreve. É uma grande empreitada e Hasan sabe disso. “Já pedi ajuda a professores na Síria e a alguns amigos, para que me mandem estudos e poder fazer o melhor possível.”

Mahmoud não pensa em voltar tão depressa, sabe que a situação vai piorar antes de melhorar. Entretanto, prepara-se e quer saber tudo o que a oposição síria não sabia sobre história e ciência política antes de se aventurar numa revolução. A primeira vez que o vimos, de fato e gravata, a assistir às conferências do Fórum Lisboa, um encontro com políticos e activistas do Norte e do Sul do Mediterrâneo que o Conselho da Europa organiza todos os anos em Portugal, imaginámos que podíamos estar a olhar para um futuro político. No segundo encontro, estava de jeans, T-shirt e casaco de fecho e capuz, mas não deixava de parecer capaz de um dia ajudar a governar o seu país.

Talvez por ser mais velha do que Mahmoud, Hasan, Nour e Maria, talvez por causa dos últimos meses em Évora, talvez por ser apenas diferente, Amira não se imagina em condições de regressar nos anos mais próximos à Síria. Por causa da Síria e por causa dela própria. “A Síria acabou. Os irmãos não confiam uns nos outros, os primos desconfiam dos primos. E eu preciso de me educar mais, de ganhar experiência e de ganhar dinheiro. Talvez aos 50 anos eu possa ter algo para dar ao meu país.”

Nour, que continua, um pouco como todos os sírios, a sentir alguma culpa por estar longe e vivo — porque é que não foi ele “a morrer num acidente de carro ou com um tiro de um atirador furtivo?” —, diz que só tem um sonho. “Quando um dia morrer, quero morrer na Síria. A nossa terra é muito importante para nós.”

Todos, mesmo os que dizem que o coração lhes chora quando vêem destruídos os lugares que conheciam, sabem que a reconstrução mais difícil não vai ser a das cidades. “O mais importante são as pessoas. Quando pensamos nas crianças, uma criança que viu um soldado matar o pai, outra que viu um rebelde matar o pai... Vamos precisar de programas de educação globais. E, por mais que façamos, acho que não vamos conseguir apagar tudo”, lamenta Hasan, sem perder a esperança.

“A Síria está destruída, mas o pior de tudo são os estrangeiros. Cometemos erros mas os erros podem ser corrigidos. Quando conseguirmos expulsar os estrangeiros, vamos conseguir voltar a viver juntos”, diz Hasan. Os estrangeiros são todos os fundamentalistas vindos de várias partes do mundo que aproveitaram o caos sírio para ali tentarem erguer o seu país de sonho. “Todos os sírios perderam, uns de um lado, outros do outro. Vamos ter de perceber que a vingança não faz sentido, qualquer vingança será sempre contra outros sírios.”

A educação é o mais importante, insiste também Maria, sem nunca deixar de acreditar, como Mahmoud, que a Síria do futuro vai ser melhor do que a Síria do passado. “Eu não quero que as próximas gerações sintam as frustrações que eu sentia. Vou-me sacrificar para que os mais novos tenham uma vida melhor, eles merecem. Como os meus pais se sacrificaram. Um dia, a vida dos meus sobrinhos vai ser melhor por causa disto”, diz Maria. “É a nossa geração que vai ter de reconstruir a Síria.” Com mais ou menos optimismo, nisso todos acreditam e é precisamente por isso que estão aqui. “Agora é muito duro, mas eu conheço o meu povo, sei que não vamos desistir do nosso país e que podemos recuperar de tudo, de toda a destruição.”     

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