Os cuidadores dos cuidadores

Do Hospital de Magalhães Lemos, no Porto, partem todos os dias duas equipas técnicas incumbidas de cuidar de quem cuida. Serviço pioneiro criado para as diversas psicopatologias já só aceita doentes com demências.

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Adriano Miranda
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Está na hora de Emília dar a sopa. “Ralo tudo.” Tem de ficar tudo bem ralado, não vá a sonda entupir. O marido está recostado numa cama articulada, imóvel. Emília senta-se num banquinho com a tijela de sopa numa mão. Pousa-a. Pega na seringa. “Estou sempre a aconchegá-lo.”

Está com 73 anos. Só com duas muletas consegue andar de um lado para o outro. “Enquanto eu puder, entretenho-me com ele.” Está confinado à casa há uma meia dúzia de anos. A mulher dorme na cama ao lado. De três em três horas, acorda, mexe-o. Já nem precisa de despertador.

A demência foi-lhe diagnosticada em 2004. “Ele foi ao engano.” Ela é que era “a doente”. Ela ficara paralisada, de repente. Estivera meses numa cama hospitalar. Teve de lhe dar a volta: “Olha, a doutora deu-me esta carta, preciso de ir ao Magalhães Lemos. Sabes que esta doença da coluna mexe com tudo.”

Era pelo nome dela que chamavam sempre que eles iam ao médico. Ele era o cuidador. Nunca pensou que isto pudesse acontecer-lhe. Ela também não: “Chegou a chefe de armazém. Tinha uma cabeça! Vocês chegavam à beira dele, davam-lhe um recado e ele nem apontava! Tudo o que saía do armazém ficava na cabeça dele.”

A ouvi-la está um par de enfermeiros do Magalhães Lemos, o hospital psiquiátrico da região norte. Integram a equipa de apoio domiciliário encarregada de visitar uns 400 doentes que já não conseguem vir ao serviço ou que se recusam a fazê-lo. De segunda a sexta saem dois carros, cada um com dois técnicos: dois enfermeiros, um enfermeiro e um assistente social ou um enfermeiro e um psiquiatra.


– Ele agora está sempre a gemer – queixa-se Emília.

– Terá dores? – pergunta o enfermeiro Adelson Estrela.
– Não tem febre.

– Será de estar muito tempo na mesma posição?

– Ainda agora o virei, mas, mesmo viradinho, vai gemendo.

Sobra-lhes empatia. Não lhes compete pôr sondas, trocar pensos, dar banhos. Isso é tarefa dos cuidados primários. Estão incumbidos de ensinar quem cuida a cuidar e a cuidar-se, não vá o stress, a ansiedade, o desgaste levar à depressão ou ao colapso, gerar negligência, mau trato ou abandono.

O serviço de psicogeriatria, criado há 17 anos para idosos com diversas psicopatologias, já só aceita doentes com demências. Não é que a demência esteja a alastrar-se, esclarecera a directora do serviço, Rosa Encarnação, numa conversa prévia. É que as pessoas vivem cada vez mais tempo.

O modelo tem inspirado outras unidades hospitalares, mas ainda hoje António Alfredo de Sá Leuschner Fernandes, presidente do conselho de administração do Magalhães Lemos, não conhece outras que disponham de um apoio domiciliário especializado, a funcionar de forma tão regular, como este.

O cuidador tipo é uma mulher, casada, entre os 54 e os 64 anos, mas há cada vez mais homens e cada vez mais idosos a desempenhar esse papel, como Emília. Tanta coisa teve de aprender desde que a doença se apoderou do homem com quem se casou há 52 anos: como hidratá-lo? Como reagir às alterações de comportamento? Como evitar a inversão dos padrões de sono?

O cuidador faz parte do plano terapêutico. Assume-se que sem ele nada se pode fazer. É chamado a uma consulta específica. A sós, num pequeno gabinete, um enfermeiro explica-lhe o que é a doença, como progride, como lidar com ela.

Pequenos passos podem evitar grandes stresses. Tirar os tapetes da casa, trocar os chinelos pelas pantufas, fechar bem as embalagens de detergente, exemplificara a psiquiatra Rosa Encarnação. A visita domiciliária reforça essas lições e acrescenta outras, conforme a doença evolui. Não gosta de água? Talvez goste de gelatina. Comer um prato de gelatina é quase como beber um copo de água. A gelatina tem proteínas. Se as proteínas não estiverem repostas, vai ferir-se mais.

Os enfermeiros observam o doente. As pequenas feridas que tinha nas orelhas já sararam. Por que geme?

– A “argália” está a sair aqui. Acho que não será da “argália” – diz ela, referindo-se à algália.

– Isto não está em condições – responde o enfermeiro, pegando no tubo de borracha fino que liga a bexiga do doente a um saco de plástico transparente – Isto tem pus.

– Tem pus?

– Tem. Cheiro tem?

– Muito activo.

– Então é uma infecção urinária. Este gemido é dor. Vou pô-lo para cima para você ver – prossegue, virando o doente.– Por que não está aqui logo e dá-me outra vez a mão? – brinca ela.

– O que eu sei não é de cor.
– E o que eu sei alguém me ensinou.

Não é por acaso que a equipa de apoio domiciliário é multidisciplinar, elucidara Rosa Encarnação. É preciso olhar para várias áreas, porque estes doentes já não se servem das palavras, exprimem-se através de alterações do sono, agitação, agressividade e isso tem de ser compreendido.  

Já não há agressividade alguma no marido de Emília, adiantada que está a doença, mas ainda na véspera Rosa Encarnação a sentira durante uma visita domiciliária – um homem soltava um resmungo cada vez que a psiquiatra lhe dirigia a palavra. Era o marido de Nazaré, que só tem meio pulmão, passa 16 horas por dia ligada a uma máquina de oxigénio, e mesmo assim levanta-se cedo, dá pequeno-almoço ao marido, acomoda-o no sofá da sala, de frente para o televisor, vai à lota e volta a tempo de fazer almoço.

No princípio, ninguém pensa em doença mental. As pessoas acham natural os mais velhos esquecerem-se das coisas, elucida a enfermeira Fátima Durães, que desta feita está a fazer equipa com Adelson Estrela. O alarme soa perante atitudes demasiado estranhas. O de Emília soou assim: “Ele a oferecer-me dois chapos?! Eu olhava para ele e virava as costas. Ele nunca foi agressivo!”

Teve de aprender a viver com a perda progressiva do marido. Foi vendo como se ia perdendo dela, dos outros, de si próprio. Uma tarde inteira não lhe chegava para contar essa dor. “Ele pintava a manta.” Ligava o fogão, fugia, perdia-se. E ela tinha de desligar o fogão do disjuntor, de esconder a chave, de travar a porta. Como podia ele fazer o que minutos antes ela lhe pedira que não fizesse?

A perda de memória desespera quem cuida. Para a explicar, na consulta do cuidador, o enfermeiro António Giro costuma pedir que se imagine um gravador de fita a correr 24 sobre 24 horas. A fita é castanha, mas tem partes transparentes, impróprias para registo, que alastram à medida que a fita vai ficando gasta. “Mesmo que se puxe a fita para trás, nas zonas transparentes é como se nada tivesse acontecido.”

À fase da negação, na qual o cuidador recrimina o doente, segue-se a da aceitação, na qual devora informação. Depois, há a tentativa de controlar a situação, que exige um enorme ajuste, e, por fim, a rendição. “Pode-se estabilizar o humor, o sono, o comportamento, mas não se pode curar a demência”, frisara a psiquiatra. “Alguns não passam pelas várias fases. “Ficam sempre zangadas. Por que é que não conseguimos dar solução a isto? Somos todos uns incompetentes!”

Nada desespera tanto os cuidadores como as alterações de comportamento. Uma linha telefónica funciona 24 horas por dia. Com o ensino, dissera Giro, “vão percebendo que a maioria das alterações tem base orgânica: infecção urinária, diabetes descompensada, infecção respiratória”.

Maria já não corre para as urgências como corria por causa da mãe, que está numa cama há 12 anos. Agora, evita deslocá-la. Já aprendeu muitas estratégias. “Faz de conta: ela tem tosse, faço um xarope de cenoura.”

– Mãe, mãe!

Chama muito. Nesse chamar, Maria ora é filha, ora é irmã, ora é mãe dela. Um enfarte deu-lhe cabo do cérebro. Diz a filha que ela “esteve muito mal – deixou de comer, não queria tomar banho”. Nessa altura, era desmedido o stress que provocava na família. Recuperou o gosto pela vida, mas nunca mais se levantou.


– Maria! Maria! Ó Maria!

Completou 84 anos. Além desta filha, a cuidar dela está outra, que vive no andar de cima, e uma neta, que ela criou e que muitas vezes vem dormir com ela, agora que tem o marido emigrado. Nos primeiros anos, foi mais difícil. Acostumaram-se. Já nem este chamar insistente parecem estranhar agora.

– Maria! Maria, anda cá!

Há muitas famílias desavindas e, no meio delas, idosos incapazes de se amanharem sozinhos. A equipa do Magalhães Lemos, por vezes, assume o papel de árbitro. Uns queixam-se: “A minha irmã não faz nada, fica tudo para mim.” E a equipa tem de chamar a outra parte, de lembrar que “seria bom partilhar” tarefas.

Acontece, no princípio, alguém até querer assumir a empreitada por inteiro. “A pessoa não está a ver o filme todo”, nota Rosa Encarnação. A sobrecarga pode ser esmagadora. “Temos de dar tempo às pessoas para perceberem que não aguentam. Para ficarem bem consigo, algumas têm de tentar.”

O desgaste do cuidador também afecta o comportamento do doente. Por isso, nas visitas ao domicílio, a equipa vai avaliando, além da capacidade para cuidar, o tempo que lhe dedica, o grau de stress que isso lhe provoca, a existência de apoio formal ou informal, a força dos conflitos familiares.

Neste fim de tarde, a mãe de Cármen está calada, no cadeirão da sala, com uma manta sobre os joelhos. Às vezes, desata a gritar. Ainda na véspera, quisera atirar tudo para o chão.


– Ela tem tido muitos espasmos – queixa-se a filha.
– Isso é uma evolução da doença – diz a enfermeira Fátima Durães.

– Duram pouco, mas são muitos.

– É mais um fusivelzinho que se está a queimar.

– De há dois meses para cá não consegue controlar o chichi e o cocó. Eu dava-lhe de comer, levava-a. Agora não.
– É como os bebés. Eles nascem e a gente põe logo a fralda. Com os idosos é a última coisa a perder. Nós subimos umas escadas e fazemos o caminho inverso.

Cármen olha pela mãe há nove anos. Há sete, ao vê-la estourada, a filha desafiou a tia e a prima: “A partir de hoje é preciso ajudar a minha mãe a cuidar da minha avó, se não qualquer dia também é preciso cuidar dela.” A prima respondeu logo que não. A tia arcou a responsabilidade de cuidar na sogra um fim-de-semana por mês. “Nunca estou descansada. Tenho consciência que a trata bem, mas é mais forte do que eu.”

Tantas vezes a equipa entrou nesta casa e mal olhou para a doente. Cármen chorava “em bica”. “Tenho depressão e ansiedade crónica”, diz. “Quanto mais cansada estou, pior fico. O que me custa mais é quando ela está a gritar e eu não sei o que fazer. E é levantar-me de noite três e quatro vezes por causa dela e depois ter de me levantar às seis da manhã para ir trabalhar.”

Irritabilidade, ansiedade, isolamento social, depressão, esgotamento são comuns entre cuidadores de dementes. No Hospital de Magalhães Lemos, uma vez por semana, funciona um grupo de ajuda mútua. Nessas sessões, cuidadores fazem partilha. O serviço organiza também sessões psicopedagógicas, dá consultas de psicologia e está a estruturar uma consulta psiquiátrica. “Às vezes, estão tão exaustos, tão sem vontade para nada, que ir a uma consulta é complicado”, contara Rosa. “Se for aqui, às vezes aceitam.”  

Não é racional. “Quanto mais desgastadas as pessoas estão, mais difícil é saírem do lado dos doentes”, salientara Rosa. “Têm medo que aconteça alguma coisa. É como se fossem prisioneiras sem terem porta fechada.” Há que incentivar a descansar, a sair. Não havendo familiares disponíveis, apontam serviços da comunidade, como os centro de dia ou o apoio domiciliário. Rosa costuma dizer: “Já pensou que tem de sair e ir comprar salsa?” Por vezes, dá por ela a aconselhar: “Leve-o à urgência.” Parece-lhe que isso alivia o sentimento de culpa. “É um bocado dar autorização. Não quer dizer que a pessoa vá fazer isso, mas percebe que pode.”

A mãe inicia um gemido contínuo.

– São as alterações de humor – diz o enfermeiro Adelson Estrela.

– O humor e o comportamento alteram ao longo do dia. Temos capacidade de perceber porque estamos chateados. Ela não. Fica inquieta.

A primeira vez que Cármen se queixara que a mãe estava agitada, Adelson explicara-lhe que “estar agitado é levantar a casa”. Ela estava inquieta. Estar inquieto é, por exemplo, levantar-se, ir à cozinha, voltar, levantar-se, ir à cozinha, voltar, levantar-se, ir à cozinha, voltar. Acontece muito durante o crepúsculo. Os doentes põem-se a andar de um lado para o outro. A mãe de Cármen teve tantos momentos desses. Não havia risco para ela, mas a filha ficava à beira de um ataque de nervos.

Não é só o conjunto de sintomas. Os gastos também sobrecarregam. Somam-se fraldas, toalhetes, sabonetes, pomadas, medicamentos. Cada vez mais famílias se afligem com as despesas, sobretudo, desde que a crise começou, fazendo subir o desemprego e descer a protecção social. E a equipa do Magalhães Lemos apercebe-se disso nestas visitas que não escolhem classe social.

São 17h e a mulher de Manuel João já está a jantar.

– Quando está na cama não lhe faz um leite? – pergunta Fátima Durães.
– Não. Não faço mais nada. Está muito gorda.

– São muitas horas sem comer. Faça-lhe nem que seja um chazinho. Ela pode beber um chá e comer uma bolachinha.
– Ela come bem. Não tem fastio.

A dupla de enfermeiros fica preocupada. Manuel João tem uma filha desempregada casada com um homem que também perdeu o emprego. De repente, um filho divorciou-se, regressou de Inglaterra e não encontrou trabalho. As pensões dele, da mulher e da filha com deficiência têm de dar para tudo.

Nos percursos, que tanto a levam aos casarões da Foz do Douro como aos problemáticos bairros de Lordelo do Ouro, a equipa conhece famílias que tiraram os doentes de lares e os levaram para casa por terem perdido rendimento. “Fazemos mais treino. Verificamos se o doente não é esquecido”, explica Adelson. Não lhe parecem que os tratem pior. “Como há tempo, dedicam-se.”

O problema, apontara Rosa Encarnação, é quando a família “quer a parte boa e não quer a parte má” – por exemplo, recebe a pensão do idoso e abandona-o numa cama de hospital. Naquele dia, nove dos 20 idosos internados no serviço não deviam ali estar. Uns não tinham família que os levasse, outros não tinham família que os quisesse levar. E isso não era alheio à relação anterior à doença.

Pode ser tudo ao contrário do que agora tanto se fala. Ainda na véspera, Rosa e Adelson tinham visitado Virgínia, que deixou o emprego numa empresa de limpeza para cuidar da mãe. Os 170 euros de apoio à terceira pessoa que recebe mal chegam para água e luz. “Estou sempre a lavar roupa e a passar a ferro. Já pago muito de luz – 128 euros no último mês.” Valem-lhe os 600 euros de pensão.

As pernas dobradas, os braços junto ao peito. A mulher, de 87 anos, voltou à posição fetal. Está muito magra. Não absorve bem os alimentos. “O último reflexo a perder é a aglutição”, comentara o enfermeiro, a prepará-la. “O bebé nasce, encosta-se-lhe a cara à mama e ele suga, engole.”

Virgínia já a alimenta a medo. Agora, a pedido do médico, já nem lhe dá medicamentos. “Deixei de ir a todo o lado. Sabe o que eu gostava mais de fazer? De ir ver o meu Leixões! Nem isso faço. Não a quero deixar. Penso que posso sair, ela pode morrer e eu posso não estar aqui.” Rosa Encarnação já não insistiu com ela para sair. Como noutras pessoas que cuidaram de dementes até ao fim, adivinha-lhe um sentimento de missão cumprida. Numa fase tão avançada da doença, a relação é quase umbilical. E um aspecto parece determinante a Adelson Estrela: “Um comprimido que não se vende na farmácia – o afecto."
 
 
 
 
 

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