Orçamento propõe que carros abandonados deixem de pagar IUC

Medida preocupa ambientalistas e recicladores; Finanças dizem que imposto ainda se aplica enquanto veículo estiver na via pública.

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Uma frase com dez palavras na proposta de Orçamento do Estado para 2015 está a deixar ambientalistas e recicladores de automóveis em polvorosa. Os veículos “considerados abandonados” vão passar a estar isentos do Imposto Único de Circulação (IUC), uma possibilidade que para a associação Quercus e a empresa Valorcar, criada para gerir a reciclagem de veículos em fim de vida em nome do sector automóvel, significa um “retrocesso ambiental”.

A alteração na prática poderá desonerar o proprietário do veículo do pagamento do IUC enquanto o veículo, já rebocado, estiver nas mãos da autarquia – algo que, de qualquer forma, já deveria acontecer. Introduzido em 2008, o IUC substituiu o antigo “selo do carro”, com uma modificação importante. Antes, o imposto incidia sobre a circulação do automóvel. Se o mesmo não circulasse, não era obrigatório pagar o selo. A partir de 2008, o imposto passou a incidir sobre a posse. Quem tiver um carro tem de pagar o IUC, ande ou não com ele.

O IUC só deixa de ser aplicado quando o carro é vendido ou a matrícula é cancelada. E para um veículo em fim de vida, o cancelamento só é possível se o automóvel for destruído num centro autorizado de abate. Entregá-lo a um sucateiro ilegal ou abandoná-lo na rua ou num pinhal significa que o proprietário terá de pagar indefinidamente o IUC.

A proposta de Orçamento do Estado agora isenta do IUC “os veículos considerados abandonados nos termos do Código da Estrada”. Esta alteração pôs em alerta a entidade que gere a reciclagem dos veículos em fim de vida em Portugal. “Isto é um retrocesso enorme na política ambiental do país”, afirma Ricardo Furtado, director-geral da Valorcar. “Estamos a desresponsabilizar as pessoas que estão a abandonar os carros na via pública”, completa.

A associação ambientalista Quercus juntou-se à Valorcar, ambas a defenderem que o IUC continue a se aplicar aos automóveis abandonados. “É um factor dissuasor muito importante que permitiu reduzir drasticamente este problema no país”, argumentam, num comunicado que é difundido esta terça-feira. O número de carros abandonados recebidos pela Valorcar caiu de 10.684 em 2009 para 4355 em 2013. Em 2006 eram 38% do total, agora são 8%.

O Ministério das Finanças, no entanto, desdramatiza a situação. Numa nota enviada ao PÚBLICO, o ministério recorda que, segundo o Código da Estrada, um automóvel só é considerado abandonado depois que é removido ou apreendido e desde que o proprietário não o reclame de volta no prazo de 45 dias.

“Até esse momento, e de acordo com a legislação em vigor, enquanto o veículo permanecer na via pública não é considerado veículo abandonado, pelo que está sujeito a IUC nos termos da lei vigente”, refere o ministério. A alteração visou apenas “conformar o Código do IUC com as regras que decorrem do novo Código da Estrada”.

Depois de 45 dias, os carros recolhidos da via pública passam para o Estado ou para os municípios. Em tese, estarão já automaticamente isentos de IUC, desde que a Autoridade Tributária saiba que o automóvel mudou de mãos. Se não souber, o IUC continua a ser imputado ao proprietário que abandonou a viatura.

Na prática, as câmaras municipais normalmente juntam lotes de viaturas abandonadas, depois abrem um leilão para a sua entrega a um centro de desmantelamento. Uma vez legalmente abatidos, a matrícula é cancelada, dando lugar  ao fim definitivo da cobrança de IUC a quem quer que seja. Segundo o Código da Estrada, um veículo também é considerado abandonado “quando essa for a vontade manifestada expressamente pelo proprietário”.

O que a Valorcar e a Quercus temem é que a alteração agora proposta deite por terra todo um trabalho que vem sendo feito ao longo dos anos para acabar com a chaga dos carros abandonados. E também que, além de libertar o proprietário do automóvel abandonado do pagamento do IUC enquanto o veículo ainda estiver nas mãos das câmaras, introduza mais entropia na confusão já existente no cancelamento das matrículas.

Há um conflito entre o Código da Estrada e a legislação sobre os veículos em fim de vida. As matrículas dos carros abatidos só podem ser canceladas mediante a apresentação de um certificado de destruição. Mas muitos milhares de matrículas são anuladas por simples “ordem do proprietário” – figura possível se o automóvel deixar de circular na via pública, segundo o Código da Estrada. Em 2013, foram cerca de 90 mil, ou 36% de todas as matrículas anuladas.

Ninguém sabe, porém, se estes casos todos são de facto de carros que deixaram de circular ou se muitos simplesmente não terão sido abandonados ou entregues a sucatas ilegais. 

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