Olhos no ar, desconfiança no chão, regras em parte incerta

A questão da privacidade é uma das mais discutidas quando se fala em pequenos drones equipados com câmaras de filmar, que podem ser comprados em qualquer grande superfície. Em Portugal, não há leis específicas, mas até as lojas para crianças estão atentas ao mercado.

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Há cada vez mais pequenos drones a voar JEAN-PIERRE CLATOT/AFP

Se alguém fizesse uma lista das frases mais repetidas em 2014, seria difícil deixar de fora "Se vir um drone a passar por cima de mim, dou-lhe um tiro". Ou uma pedrada, se o cidadão indignado viver num país mais restritivo em relação ao uso de armas de fogo.

É claro que há centenas ou milhares de expressões mais repetidas no dia-a-dia (em Portugal, por exemplo, a frase "Não estava ao corrente dessa matéria" tem sido muito usada nos últimos dias, na Comissão Parlamentar de Inquérito à Gestão do BES e do Grupo Espírito Santo), mas serve o exagero para frisar que as questões de privacidade não se resumem aos programas de espionagem da Agência de Segurança Nacional norte-americana revelados por Edward Snowden.

A preocupação e a desconfiança com o uso cada vez mais comum de pequenos veículos aéreos não tripulados já provocou pelo menos um episódio de violência.

Em Maio, Austin Haughwout, de 17 anos, foi agredido por uma jovem de 23 quando estava a operar o seu drone equipado com uma câmara de filmar (neste caso, um pequeno aparelho com quatro rotores) nas proximidades de uma praia em Madison, no estado norte-americano do Connecticut. Furiosa, Andrea telefonou à polícia e acusou Austin de "estar a tirar fotografias a pessoas na praia", antes de desligar e atirar-se ao rapaz, rasgando-lhe a t-shirt enquanto ameaçava partir-lhe o nariz e tentava agredi-lo na face.

O jovem filmou tudo com a câmara do seu telemóvel, e provou também à polícia que não tinha filmado ninguém – as imagens captadas pelo drone mostravam lá em baixo ondas, areia, árvores e figuras humanas que pouco se distinguiam de formigas. Resultado: Andrea Mears foi acusada de agressão e Austin Haughwout recebeu autorização da polícia para poder continuar a filmar com o seu drone naquela zona.

Este episódio serve também para ilustrar a actual encruzilhada entre o crescimento de um mercado (o do uso de pequenos e relativamente baratos veículos aéreos não tripulados com câmaras de filmar) e a percepção da generalidade das pessoas de que não há leis para punir possíveis abusos.

Se houvesse dúvidas de que há mesmo um buraco na lei, a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) encarregou-se de desfazê-las em Maio.

Num parecer com uma linguagem particularmente incisiva, a presidente da CNPD, Filipa Calvão, intimou a Polícia de Segurança Pública a apagar todas as imagens captadas por um drone durante a final da Liga dos Campeões em futebol, que opôs o Real Madrid ao Atlético de Madrid no Estádio da Luz, em Lisboa.

"Com efeito, não existem regras jurídicas que enquadrem a utilização de aeronaves não tripuladas no território português, facto que a CNPD já teve a oportunidade de fazer notar ao legislador nacional", lê-se no parecer da comissão, que detalha alguns dos problemas: "Estas aeronaves colocam, como facilmente se intui, problemas específicos em matéria de privacidade dos cidadãos. Isto porque, especialmente quando são de menor dimensão, circulam em qualquer ambiente sem que os indivíduos se apercebam que estão a ser utilizados, porventura, com o específico intuito de os vigiar. Por outro lado, nem sempre é claro quem os está a utilizar e a sua característica de elevada mobilidade, associada à reduzida susceptibilidade de serem detectadas, torna-as um instrumento potencialmente perigoso para a privacidade e liberdade dos cidadãos."

A PSP acabou por ser intimada a apagar as imagens porque a lei invocada no seu pedido (n.º 1/2005) "não prevê a utilização de meios aéreos de videovigilância, muito menos de aparelhos com estas virtualidades", e a Administração Pública "só pode fazer aquilo que estiver previsto na lei". Nas conclusões, a CNPD antecipa a multiplicação de casos semelhantes, por forças de segurança ou por privados, e afirma que "urge regular esta matéria por via de lei".

Natal com drones para crianças
Mas enquanto a lei não chega, são vários os vídeos publicados em sites como o YouTube que mostram imagens captadas por pequenos drones sobre o Estádio da Luz, a Ponte 25 de Abril e muitos outros locais em Lisboa e um pouco por todo o país. Não são feitas apenas por empresas de captação de imagem (que, em princípio, sabem que têm de pedir autorização a várias entidades), mas também por amadores e curiosos, que compram pequenos drones em grandes superfícies.

Ainda não se pode dizer que o drone é o presente preferido deste Natal, mas as prateleiras de várias lojas para crianças já estão decoradas com aparelhos como o Nanocoptero Spy Cam ("¡Graba Vídeos y Hace Fotos Desde el Aire!") ou com o pequeno Droni, "o teu robô voador" que capta "fotos e vídeos impossíveis!"

Laura Elizabeth Pinto ("do lado dos meus pais há espanhóis, portugueses e italianos", dirá ao PÚBLICO) é professora no Instituto de Tecnologia da Universidade de Toronto, no Canadá, e preocupa-se com a possibilidade de as crianças estarem hoje a crescer num ambiente que "normaliza a vigilância", e com o impacto que isso poderá ter quando chegarem à idade adulta.

No início do mês, Laura Pinto escreveu um artigo em conjunto com Selena Nemorin, investigadora e especialista em filosofia da tecnologia e robótica na universidade australiana de Monash. Sob o título Who’s the Boss? (Quem é o chefe?, ou Quem é que manda?), as duas investigadoras tentam demonstrar que um dos brinquedos com mais sucesso no Natal norte-americano "consolida a ideia de que a vigilância é normal", disse Laura Pinto ao PÚBLICO.

O brinquedo em causa não é um drone, mas a investigadora traça paralelismos. Trata-se de um boneco que vem com um livro, chamado Elf on the Shelf (O Elfo na Prateleira), e que dá origem a um jogo: o boneco é escondido pelos pais e é dito às crianças que tudo o que elas fizerem será reportado ao Pai Natal quando elas estiverem a dormir. As crianças não podem tocar no boneco, senão a magia quebra-se e poderão não receber prendas no Natal – o elfo vê tudo e depois vai contar "ao chefe".

No que muita gente vê uma inocente brincadeira, não muito diferente do, "se não comeres a sopa, toda vem aí o papão", Laura Pinto e Selena Nemorin vêem "a aceitação de uma forma de vigilância extra-familiar em casa, quando o elfo se torna na fonte de poder e de julgamento, com base num conjunto de regras estabelecidas pelo Pai Natal".

"O Elfo na Prateleira é único porque dilui a distinção entre a brincadeira e a vida real. As crianças têm de obedecer a regras em todos os momentos do dia. É diferente de outras brincadeiras com bonecos mais convencionais, em que as crianças criam mundos a partir da sua imaginação e estabelecem ligações com outras pessoas e outros bonecos", explica Laura Pinto.

A investigadora dá exemplos de como o elfo pode ser uma fonte de ansiedade para algumas crianças: "Por exemplo, já recebi uma mensagem de um casal a dizer que os seus filhos tinham entrado em pânico depois de terem derramado o leite sem querer, porque não tinham a certeza de que o elfo sabia que tinha sido um acidente."

E onde é que o elfo encontra o drone com uma câmara de filmar quando falamos de crianças? "Ambos apresentam enormes problemas éticos", diz Laura Pinto. "A questão é saber se brincar com o elfo ou com drones torna as crianças menos conscientes e menos críticas em relação a outros tipos de vigilância. O elemento comum nestes casos é a privacidade."

Para este Natal, se está a pensar oferecer um drone ao seu filho, a professora da Universidade de Toronto deixa um conselho: "É importante a forma como os pais envolvem os seus filhos nas discussões. Pode ser muito produtivo comprar um drone, mas tenham uma boa conversa com os vossos filhos."

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