Observatório acusa Governo de “síndroma de negação” do efeito da crise na saúde

Relatório anual do Observatório Português dos Sistemas de Saúde denuncia que aumento de reinternamentos, amputações de diabéticos e infecções respiratórias são reflexo dos problemas de acesso aos cuidados.

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Serviços disponibilizados pelas plataformas ainda se concentram nos grandes centros urbanos Foto: Fábio Teixeira

Uma fachada de uma casa com a porta entaipada com tijolos. Foi esta a imagem escolhida pelo Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) para ilustrar a capa do seu Relatório de Primavera, que é apresentado nesta segunda-feira na Gulbenkian, em Lisboa, e que traça uma fotografia da degradação do estado da saúde em Portugal. O documento, que já vai na 15.ª edição, defende que a crise está a ter um impacto muito significativo em vários indicadores na área da saúde e acusa o Governo de sofrer de “síndroma de negação” ao rejeitar esta realidade, contribuindo com essa postura para que não se trabalhem formas de “acautelar ou minimizar os previsíveis efeitos” das medidas tomadas.

Para os autores do relatório, coordenado por Ana Escoval, Felismina Mendes e Manuel Lopes, “parece ser evidente, e à semelhança do que afirmámos em anos anteriores, que estamos perante um conjunto de dados que indiciam o impacto negativo da crise sobre a saúde das pessoas. Ou seja, está a acontecer o que era expectável. Apesar disso, não se vislumbram sinais indiciadores de uma política intersectorial de saúde que tenha como objectivo monitorizar indicadores de impacto e acautelar ou minimizar os previsíveis efeitos da crise, nomeadamente nos grupos mais vulneráveis”.

Dos dados relacionados com a saúde mental, aos medicamentos, diabetes e alimentação, são vários os exemplos explicitados pelo Relatório de Primavera, que resulta de uma parceria entre a Escola Nacional de Saúde Publica da Universidade Nova de Lisboa, o Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra e a Universidade de Évora, este ano reforçada com a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.

Na introdução, o OPSS reforça que “os efeitos negativos da crise económica e financeira sobre a saúde são evitáveis”, sendo que para isso é preciso “investir simultaneamente na protecção social e na saúde pública” – sublinhando-se, ainda, que “investir na saúde serve, não só para proteger as pessoas da crise, mas pode ter um papel importante na recuperação económica”. Perante as “duras medidas de austeridade”, diz o documento, “as boas práticas de saúde pública recomendam que se antecipe e previna, o mais cedo possível, os seus efeitos sobre o bem-estar da população” no sentido de “mitigar os impactos da austeridade excessiva”.

“Um desenvolvimento cada vez mais hipotecado”
Porém, segundo os autores, o caminho seguido pelas autoridades tem sido precisamente o contrário: “Ao invés, parece ser evidente um manifesto esforço quer da União Europeia, quer do Governo português, de negar a evidência do impacte da crise sobre a saúde das pessoas e negando-o, evitar a discussão e consequentemente a adopção de medidas de prevenção e/ou de combate. Tal atitude poderia até ser apelidada de síndroma de negação”. O problema, prosseguem, “é que do outro lado estão pessoas em sofrimento e com um desenvolvimento cada vez mais hipotecado tal como se percebe pelos dados apresentados”.

No relatório de 2012, os especialistas do OPSS já alertavam para um “país em sofrimento”, com indícios de racionamento que estaria a dificultar o acesso dos portugueses a cuidados de saúde. No de 2013, o documento referia-se a “duas faces da saúde”, confrontando a “versão oficial” com dados e estudos disponíveis sobre a “experiência real das pessoas” – avançando que 30% dos idosos da zona de Lisboa inquiridos num estudo já não conseguiam dar resposta a todas as despesas de que necessitavam na área da saúde. Os indicadores de saúde mental, como as depressões e os suicídios eram também já referidos no documento. Agora, o OPSS volta a apontar o dedo à “existência de dois mundos”, aquele que é “o oficial, dos poderes, onde, de acordo com a leitura formal, as coisas vão mais ou menos bem, previsivelmente melhorando a curto prazo” e o chamado mundo da “experiência real das pessoas”.

A falta de dados de acompanhamento da situação é uma das principais críticas reiteradas pelos autores nesta edição de 2014, que alertam que fazer o Relatório de Primavera é “um exercício crescentemente mais difícil na exacta medida em que o acesso e a transparência da informação estão, cada vez mais, condicionados”. Ainda que saúdem a apresentação de alguns números por parte do Ministério da Saúde, os autores salvaguardam que “os grandes números e a estatística das médias camuflam o que se passa nas franjas”. Segundo o observatório, nestas alturas de crise estão a ser pouco trabalhados os indicadores ligados às doenças mentais e infecciosas, que são os mais sensíveis neste momento.

Reinternamentos e mais infecções
O documento refere o caso da diabetes como exemplo concreto da deterioração do acesso aos cuidados de saúde. Se, por um lado, há melhores registos do que é feito e os cuidados chegam às pessoas de forma alargada, por outro o observatório destaca o “aumento persistente dos reinternamentos” por complicações relacionadas com a diabetes, que representaram mais de um quarto do total de internamentos em 2012. Também foi registada uma inversão da tendência de redução do número de amputações de membros. “As amputações major aumentaram 8,9% nesse mesmo ano, embora estivessem a diminuir desde 2008”, diz o documento, que destaca ainda o aumento da prevalência da doença.

As doenças respiratórias também são uma fonte de preocupação para o OPSS, que afirma que o número de casos de pneumonia, muito superior as taxas de outros países, é um dos que merece mais reflexão, fazendo uma ligação entre o crescimento destas patologias e a “subutilização de medicamentos e o fraco acesso a cuidados de saúde”. “A mortalidade e o internamento por doenças respiratórias aumentaram em 2012. O caso da morte por pneumonia é paradigmático, com os números a agravarem-se significativamente em 2012 com mais 25% de mortes que em 2011; a taxa de mortalidade por pneumonia em Portugal é o dobro da média europeia. Em 2010 a taxa de mortalidade por pneumonia em Portugal era de 24,2 por cem mil habitantes, quando na UE a 27 era de 12,9”, lê-se no relatório.

Outra área alvo de destaque é o sector do medicamento, que nos últimos anos sofreu várias mudanças, com a despesa do Serviço Nacional de Saúde a cair em mais de 570 milhões de euros entre 2010 e 2013. O OPSS assume que a redução do preço dos fármacos foi inicialmente benéfica para melhorar o acesso dos doentes, mas contrapõe que as farmácias ficaram numa situação financeira de tal maneira grave que não conseguem assegurar os stocks de muitos medicamentos, acabando até por promover a exportação para outros países. “As consequências sobre os utentes são evidentes, com falhas na distribuição, nomeadamente de alguns medicamentos life saving”, isto é, fármacos sem os quais o doente fica em risco de vida em pouco tempo.

São ainda referidos os atrasos na aprovação de novos produtos. O OPSS escreve que Portugal era em 2011 o país com os números mais baixos na Europa na entrada de novos medicamentos, sendo que em 2012 só foram aprovadas dez moléculas novas e cinco em 2013. Números que mostram a “necessidade urgente de remodelação do próprio sistema de comparticipação e financiamento que constituem um dos principais eixos de ineficiência do actual modelo de acesso e disponibilidade dos medicamentos inovadores aos doentes”.

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