O relatório sobre a natalidade

Se o Governo está preocupado com a baixa da natalidade, o melhor que tem a fazer já é desenvolver a economia e não asfixiá-la.

O relatório “Por um Portugal amigo das crianças, das famílias e da natalidade” é um útil instrumento para o debate aberto sobre a demografia nacional. Assim o comprova o acolhimento que teve na comunicação e no debate político e social. O seu impacto vai-se manter por muito tempo o que é prova da sua valia.

Todavia, como documento partidário que é, o relatório não está acima da crítica política. Bem sabemos que os seus autores fizeram da independência uma profissão de fé. Mas se em termos gerais o relatório, com pequenas mudanças quase podia ser consensual, nas medidas de política que propõe perfilha uma visão unilateral da família, a família tradicional, homem e mulher, olhando com desconfiança moral para a monoparentalidade, para as crescentes reduções das taxas de nupcialidade e de nascimentos fora do matrimónio, para o aumento das taxas de divórcio e para outras formas de constituir família. Honra lhe seja feita, documenta com objectividade a evolução dos países do norte da Europa que deram a volta à baixa da natalidade, recorre a cientistas e documentos independentes, como Gosta Esping-Andersen, o Conselho da Europa e o Parlamento Europeu, deste último retirando a conclusão que “os países mais familistas (onde se acredita que é necessário ser-se casado para ter uma criança e que é necessário ficar em casa para a criar) são os países que registam (hoje) as mais baixas taxas de fecundidade”.

O relatório é francamente defensor da igualdade entre homens e mulheres, reconhece que todos os resultados dependem de microdecisões dos progenitores, manifesta respeito pela liberdade de escolha e subsidiariedade, que as políticas têm que ser integradas. Em vez de um activismo pró-natalista que tem atrás de si um rasto de falhanços, se devem antes adoptar medidas de remoção de obstáculos. Todavia, quanto à forma de transformar as ideias em políticas, não resiste a um idealismo serôdio: “é preciso constituir uma liderança forte e esclarecida que inspire um caminho, que mobilize os Portugueses para uma meta de ressurgimento da natalidade e da celebração da vida”. Um relatório escrito a várias mãos.

O relatório analisa bem o impacto das migrações em diversos países europeus, salientando o rejuvenescimento demográfico da França, de efeitos contraditórios, fruto do contingente de quase 6 milhões de emigrantes com padrões de fertilidade bem acima da média dos europeus. Infelizmente, para o caso português, apesar de bem documentar a quebra de 20 mil nascimentos anuais nos quatro últimos anos, associando-a à crise e à saída do País de milhares de jovens adultos em idade fértil, adopta como plausíveis as projecções do INE para 2060 sobre migrações, as quais oscilam apenas entre mais e menos 20 mil migrantes, nos dois sentidos. Se nada nos permite recusar a hipótese mínima, a tal que agora se está a verificar, não há razão para afastar as consequências de um crescimento económico futuro acima de 2% ou até de 3% (como na segunda metade dos anos noventa), o qual arrastará um aumento muito forte da imigração, eventualmente elevando o número de estrangeiros em Portugal de 400 mil até 1 milhão, um décimo da população total. Para quem duvide, basta observar que a França, ainda hoje, tem um pouco mais de um sétimo de estrangeiros na sua população total e a Espanha, antes da bolha, acumulou um oitavo.  

Embora reconhecendo não ter podido realizar qualquer estudo de impacto das medidas propostas, o que se aceita, o relatório manifesta o desejo idealista de fundos comunitários (acordos de parceria) poderem vir a ser utilizados para promover uma nova política de remoção dos obstáculos à natalidade. Não consegue disfarçar a tolerância perante a necessidade de contenção financeira e de aplicação gradual das medidas, por força da situação económica do país. Abre caminho às desculpas de Passos Coelho para condicionar a aplicação das medidas ao bom estado das finanças públicas. Com esta abertura o actual governo encontra escapadela, quando se esquece que o agravamento da situação nos últimos quatro anos de que há registo fiável, se deve em boa parte à devastação económica a que o Governo submeteu o País desde 2011, com medidas de austeridade adicional que nada justificava e hoje se reconhece terem sido parcialmente evitáveis.

Se o Governo está preocupado com a baixa da natalidade, como estamos todos os Portugueses, o melhor que tem a fazer já, é desenvolver a economia e não asfixiá-la, criar emprego, em vez de o destruir com uma fiscalidade pesada e instável, promover o conhecimento através da investigação e da inovação, em vez de reduzir as dotações para a ciência, melhor gerir os serviços públicos, em vez de os desmoralizar com medidas depreciativas e tentativas de terciarização canhestra. O governo herdou um estado social vivo, embora tardio e carecendo de modernização. Tem que o restituir às gerações seguintes como modelo de eficiência e qualidade, em vez de o sabotar ou mesmo destruir. Será com ele e com muitas das medidas que este relatório propõe que se pode inverter a tendência do declínio demográfico, como outros fizeram antes de nós.

Professor catedrático reformado

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