O primeiro-ministro para o Quénia?

O caso passou-se em 2005, mas só em 2014 chegou ao fim.

As expressões proferidas no dia 8 de Setembro 2005 num canal de televisão foram as seguintes:

“O senhor primeiro-ministro deve estar noutro planeta, não respeitou as forças de segurança (...) , tentou de uma forma airosa virar a opinião pública contra os profissionais das forças de segurança” e, ainda, “à semelhança do que fizemos com o Governo anterior, onde (...) fizemos um desgaste permanente e temos condições para que a partir de agora façamos um desgaste permanente a este Governo à semelhança do que enviámos o anterior primeiro-ministro para Bruxelas, com certeza que mais depressa enviamos este primeiro-ministro para o Quénia”.

O autor das mesmas foi o presidente do Sindicato dos Profissionais de Polícia (SPP), António Ramos, no âmbito de numa vigília de protesto promovida por aquela estrutura sindical na Praça do Comércio, em frente ao Ministério da Administração Interna. O anterior primeiro-ministro de que falava era Durão Barroso e o primeiro-ministro que seria enviado para o Quénia era José Sócrates.

As consequências foram um processo disciplinar que culminou com a sua aposentação compulsiva por as  declarações em causa terem sido consideradas desrespeitosas para dois primeiros-ministros e, por isso mesmo, ofensivas dos “deveres funcionais de aprumo e de correcção” a que estão obrigados os agentes da PSP. Na verdade, o Regulamento Disciplinar da PSP prevê um dever de correcção que, entre outras coisas, consiste em “respeitar os membros dos órgãos de soberania e as autoridades judiciárias, administrativas e militares, prestando-lhes as devidas deferências”.

António Ramos recorreu aos tribunais administrativos, mas tanto na primeira como na segunda instância viu confirmada a sua aposentação compulsiva. Chegou, por último, ao Supremo Tribunal Administrativo (STA) que , no passado dia 16 de Janeiro, se pronunciou não sobre se o agora anterior primeiro-ministro devia ir para o Quénia (afinal foi para Paris), mas se o sindicalista devia ir para a rua.

Ora, para o STA, era indiscutível que António Ramos falara à televisão enquanto dirigente sindical e no âmbito de um conflito aberto entre o seu sindicato e o Governo. E embora aceitando a existência de restrições à liberdade de expressão dos sindicalistas das forças de segurança, o STA considerou que os mesmos não podiam estar obrigados ao dever de deferência que obriga os normais agentes da PSP, sob pena de “haver um sindicalismo diminuído e dócil”. De resto, a lei sindical da PSP apenas proíbe que os sindicalistas façam “declarações que afectem a subordinação da polícia à legalidade democrática, bem como a sua isenção política e partidária”. O que manifestamente não era o caso.

Para o STA, o sindicalista criticara a actuação do primeiro-ministro “no âmbito de um conflito laboral em curso, já que ele, agindo fora da realidade (“deve estar noutro planeta”), teria tentado virar a opinião pública contra os profissionais das forças de segurança, assim as desrespeitando”. Tais censuras eram “perfeitamente aceitáveis”, já que  produzidas por dirigente sindical a quem incumbia a defesa pública da posição que o sindicato opunha ao Governo e “tal defesa dificilmente seria eficaz sem um concomitante ataque”. Tais expressões não eram respeitosas nem deferentes para com o primeiro-ministro, mas porque o agente da PSP falara enquanto sindicalista, toda a gente entendia que o modo “agreste” da comunicação era o fruto natural do conflito extremado que então existia e prosseguia.

Quanto à afirmação de que o sindicato pretendia desgastar o Primeiro-Ministro e enviá-lo para o Quénia, que tinha sido  considerada “desrespeitosa e ameaçadora(!)” pelos tribunais inferiores, os juízes conselheiros Jorge Madeira dos Santos, António Polibio Ferreira Henriques e Alberto Costa Reis, nenhuma anormalidade detectaram no facto de um sindicato anunciar que “em defesa das suas posições, tenciona fazer 'um desgaste' ao seu interlocutor, que é o Governo”. Quanto à “forma ameaçadora” utilizada pelo sindicalista, o STA lembrou que uma ameaça para o ser teria de se  revestir de um mínimo de seriedade. E acrescentou: “Ora, ninguém no seu juízo perfeito poderia levar a sério tais palavras”.

Acrescentou ainda, o STA:  António Ramos  ao dizer que o seu sindicato enviara “o anterior primeiro-ministro para Bruxelas” e seria capaz de enviar o actual “para o Quénia”, tinha proferido “obviamente uma “boutade”, ou seja, afirmara “algo exagerado e incrível para sublinhar a força do seu sindicato e a irredutibilidade posta na defesa dos interesses dos agentes da PSP”.  E, assim, concluiu o STA que o acto de aposentação compulsiva do sindicalista era ilegal e anulou-o. E muito bem!

Ninguém quer uma república de juízes, mas que os juízes fazem falta à república não haverá muitas dúvidas...

Advogado

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