O Papa Francisco e um livro inquietante

Se for verdade que só vale a pena ler os livros que nos abalam, muito ajudam os que acendem a esperança.

1. Deixei, neste espaço, quatro crónicas sobre o estilo provocatório de alguns gestos, atitudes e intervenções do papa Francisco destinados, por um lado, a questionar e a despertar a vida da Igreja, em todas as suas dimensões e, por outro, a denunciar um sistema financeiro e económico que corrompe a própria natureza da política. Esta, em vez de se regenerar no serviço do bem comum, tornou-se um instrumento de decisões que reduzem os seres humanos pobres ou “improdutivos” a lixo social.

Perante este comportamento, não admira que certos grupos classifiquem de populista a via deste argentino. Mesmo sem exigirem o uso majestático da tiara papal, esperam, do bispo de Roma, menos espontaneidade, modos mais cerimoniosos e protocolares.

Mudo de registo. O tempo de férias – para quem as puder disfrutar - é considerado o mais adequado à redescoberta do essencial na cura da alma e do corpo. Existem no mercado espiritual várias técnicas de meditação – vindas do Oriente e adaptadas à clientela ocidental – de sucesso garantido e com modalidades de aplicação durante todo o ano [1].

Neste contexto, também desejo deixar aqui umas sugestões de meditação, menos sofisticadas e de êxito menos automático: um tempo preciso, a calcular por cada um e adaptável, segundo os imprevistos de cada dia. Essa meditação seria auxiliada, este ano, por um pequeno livro publicado nos finais do ano passado, dirigido à Igreja Católica para que saiba, em cada um dos seus membros, viver e agir no mundo contemporâneo. Chama-se “A Alegria do Evangelho” (Evangelii Gaudium). Pode ser encontrado em qualquer livraria. Está disponível na internet. Poderá ser lido em casa, na praia, no campo, no metro, no autocarro, no comboio ou nas maquinetas eletrónicas.

A meditação deve ser feita de olhos interiores e exteriores muito abertos sobre o que está a acontecer em Gaza, na Síria, no Iraque, na Ucrânia, na Guiné Equatorial, nos jogos da Banca, nas periferias de todas as sociedades do mundo e à nossa volta. Objectivo: criar disponibilidade para a nossa conversão.

2. Segundo Franz Kafka, só deveríamos ler livros que nos ferem e abalam, leituras talvez pouco recomendáveis para férias, mas não resisto.

O Papa Francisco apresentou-se como vindo do “fim do mundo”. Hoje, pretendo apresentar um livro, muito especial, que reúne textos sobre o embate, no século XVI, entre os espanhóis e os povos desse fim do mundo [2].É uma obra de três dominicanos, durante muito tempo ocultada, para não ofender o nome de Espanha, hoje a sua grande glória. São textos nunca publicados em português. O primeiro é um grito, o célebre Sermão de António de Montesinos. O segundo apresenta-se como A brevíssima relação da destruição das Índias, de Bartolomeu de las Casas e o último é a Doutrina sobre os Índios, de Francisco de Vitória, o fundador do Direito Internaciona [3].

Quando olhamos para a história, ficamos deslumbrados com os séculos XV e XVI por causa das grandes viagens oceânicas que deram a esse tempo o título ambíguo de Era dos Descobrimentos. De facto, já eram terras com muitos habitantes. O que aconteceu foi a revelação da América, feita por Colombo em 1492, o caminho marítimo para a Índia, aberto por Vasco da Gama em 1498, a revelação do Brasil feita por Pedro Álvares Cabral em 1500, a primeira viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães (1519 a 1521).

Acontecimento de uma tal dimensão, com actores tão prodigiosos, que remetem para um plano secundário aquilo que depois se revelou fundamental. O Grito de Montesinos, voz de uma pequena comunidade dominicana pobre – e estes não serão seres humanos? – despoletou um debate que desencadeou o processo da conversão de B. de Las Casas, que se tornou o grande defensor dos Índios, em Espanha e nas Américas, envolvendo a corte e a universidade de Valladolid e Salamanca.

3. A Brevíssima relação da destruição das Índias, deste dominicano, revela tantos requintes de crueldade dos colonos espanhóis, seus compatriotas, que de brevíssima não tem nada. Breve terá de ser a amostra de tanta desumanidade.

(…) Para finalizar a sua crueldade procuraram todos os índios que se tinham escondido na mata, tendo ordenado que lhes dessem estocadas, matando-os e lançando-os penhasco abaixo. Não se contentando com as coisas tão cruéis que já dissemos, mas querendo engrandecer-se mais e aumentar o horror dos seus pecados, mandou que todos os índios e índias que os particulares tinham aprisionado vivos (porque naqueles malefícios podiam escolher alguns índios e índias para o seu serviço) e lhes pegassem fogo, tendo queimado vivos uns quarenta ou cinquenta. A outros deu ordens para os lançarem aos cães que os despedaçaram e comeram (…) mandou ainda cortar o nariz a muitas mulheres e crianças [4] (…).

Se for verdade que só vale a pena ler os livros que nos abalam, muito ajudam os que acendem a esperança, os que não aceitam nenhuma fatalidade.

Boas férias e até Setembro.

[1] Cf. Aux Origines de la méditation, in Le Point, Juillet-Août

[2] Vários, E Estes Não Serão Homens?, Colecção Biblioteca Dominicana, Tenacitas, Coimbra, 2014

[3] Bartolomé de las Casas, Brevissima historia da destruição de África, Antígona, Lisboa, 1996

[4] Nota 2 pg 147

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