O orçamento pastilha elástica

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Daniel Rocha

1. Há seguramente mais de uma década que os orçamentos do Estado são feitos de plasticina, prontos a ser moldados de acordo com as conveniências, e não é por aí que o documento esta semana apresentado pelo Governo no Parlamento surpreende. Só que, desta vez, a proposta de orçamento foi mais longe, tornou-se um plano de dissimulação onde tudo se tenta, até a ideia de que nos salvamos de mais impostos. Com melhorias para uns, o assim-assim para outros e agravamentos politicamente correctos (verdes) para todos, o Governo abdicou de ser igual a si mesmo, desistiu de fazer finca-pé na trajectória do défice e tenta agora aparecer aos olhos dos eleitores com o patrono dos seus mais elementares interesses. Depois de anos a vestir a pele do lobo, tenta agora apresentar-se com a manha da raposa. Não cola.

Talvez por isso, por carecer de identidade política, este orçamento é uma espécie de pano cinzento, que não gera nem raiva, nem angústia, nem preocupação, nem expectativa. Há o “sim, mas” a muitas das suas medidas, há o “não, mas” em relação a outras, sem que o impacte do documento suscite a ira ou a estupefacção do antecessor “brutal aumento de impostos”, por exemplo. Não indica um sentido, nem o do desagravamento fiscal, nem o da consolidação orçamental. Tornou-se um saco de boxe, que absorve todos os impactes e permanece pendurado. É um bom testemunho de um governo exangue, que após viver para cumprir o programa de ajustamento perdeu o norte e a alma no dia em que a troika se foi embora. O orçamento de 2015 é por isso uma memória póstuma, que vai precisar de ser rectificado nas contas, como todos os seus antecessores da era de Pedro Passos Coelho, mas igualmente nos fundamentos políticos.

A maioria dos observadores encontrou nos seus artigos o espírito de distensão pré-eleitoral, a Primavera de um novo ciclo político que se vai viver até ao Outono do próximo ano. “É o primeiro orçamento deste governo sem troika e o último antes de eleições. E nota-se”, observou Sérgio Aníbal, no PÚBLICO. Com a ajuda do Tribunal Constitucional, o Governo pôde reduzir os cortes nos salários da função pública e terá de ser menos violento com os reformados, o que deixará um ar de alívio junto de uns quatro milhões de eleitores. É, neste particular, um orçamento com “uma construção interessante”, como notou Helena Garrido, no Negócios, por “combinar na perfeição o mínimo de austeridade permitida por Bruxelas com o máximo de pessoas que vão ser beneficiadas pelo aumento do poder de compra”.

Claro que Passos e o seu estado-maior recusam essa leitura. O “que se lixem as eleições” proclamado em pleno Parlamento da República é um adesivo que tenta preservar a sua imagem de político que corta a direito, que age apenas com a preocupação de salvar Portugal da bancarrota. O panfleto, aliás, faz parte do ritual de autoconservação no poder que Passos continua a ensaiar. Ele convenceu-se que os portugueses o percebem quando diz que não há salvação sem penitência. “Eu sei que há políticos que acham que as eleições se ganham baixando impostos e aumentando salários. Devo dizer que tenho muitas dúvidas que as pessoas, os eleitores, raciocinem exactamente nesses termos”, disse ele, categórico, esta semana.

O que soa mal em toda esta construção é a certeza de que o Governo mudou, que já não dispõe da mesma fé para fazer o que sempre fez de modo a cumprir o caderno de encargos do défice, custasse o que custasse. Com este orçamento, vendeu a alma ao diabo ao mesmo tempo que se esforça para ficar bem com Deus. A constatação de que este orçamento nem é de austeridade (a carga fiscal sobe ligeiramente e o limite do défice ou a correcção do défice estrutural foram para o lixo), nem é de crescimento (o que se dá à economia e às empresas em IRC e IRS, tira-se em impostos verdes e outras alcavalas) não se ajusta à narrativa que o Governo fez sobre si. É um híbrido, que renega o passismo, que se aproxima da apologia que o PS faz à austeridade moderada, que legitima os campeões da austeridade a perguntar se “voltaremos a ser gregos”, como o fez esta semana o director do Económico, António Costa.

Talvez a fórmula encontrada seja mais resultado de uma negociação entre os dois partidos do poder do que propriamente da afirmação de uma nova fase da governação. A “interessante reconversão pré-eleitoral de duas décimas” que Vicente Jorge Silva notou no Sol pode ser explicada pela luta entre Portas e Passos sobre qual dos dois ficaria com o papel de polícia mau e de polícia bom no filme que decorrerá no próximo ano. Ao contrário do que muitos observadores disseram, Portas não perdeu a batalha pela “moderação fiscal”. Porque se tinha posto num papel em que era impossível perder: colocara-se a correr na “pista de dentro”, como, citando-o, avisava o Expresso da semana passada e, fosse qual fosse o resultado, ganharia sempre. Havendo diminuição do IRS, ele seria o autor; não havendo, a culpa era de Passos, esse inflexível. 

Depois de três anos de “fanatismo orçamental”, o primeiro-ministro e o Governo construíram uma imagem que, se desagradava à maioria, não deixava de ser apreciada por um núcleo duro. Com este orçamento pastilha elástica, Passos corre o risco de perder o seu séquito sem ser capaz de cativar os desconfiados. Já não lhe bastava comandar um governo que é uma nau à deriva; agora vai ter de vestir uma roupa fiscal com umas décimas acima ao seu modelo político.  

2. A bem da credibilidade da educação em Portugal, a acusação de plágio ao secretário de Estado João Grancho foi levada até às últimas consequências. Ele demitiu-se, o que, sendo um gesto normal nas democracias decentes, nem sempre acontece neste regime onde o relativismo impera e onde se permite que ministros se mantenham nos cargos após serem responsáveis pelo caos que se verifica em sectores sensíveis como a educação ou a justiça. Por uma vez houve alguém que, na sequência de uma grave acusação pública, decide sair por “imperativo de consciência e de sentido de serviço público”.

Comparando a gravidade de um plágio com a incompetência que grassou na abertura do ano escolar, talvez se possa concluir que há muitas mais razões para Nuno Crato sair do que João Grancho. Mas é errado olhar para o Governo apenas pela óptica da eficácia da administração e esquecer que há nos seus membros a obrigação de servirem de exemplo moral para os governados. Principalmente na educação. É por isso que Grancho, mesmo sendo o quadro mais competente e conhecedor do sistema na equipa do ministro, tinha de sair ou de ser afastado. Um secretário de Estado que recorre ao plágio para perorar sobre a “dimensão moral” do professor não merece sê-lo. A sua continuidade no Governo seria inestética, moralmente repugnante, degradaria a imagem do Estado e minaria o sentido de responsabilidade da docência.

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