O novo guardião da fé católica é amigo do Papa e de teólogos da libertação

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Ludwig Müller vai todos os anos ao Peru leccionar na Universidade Católica de Lima, vigiada pelo Vaticano Tony Gentile/Reuters

Conservador ou progressista? Moderado ou adepto da teologia da libertação? O perfil do novo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), do Vaticano, nomeado no início da semana, revela um trajecto atípico do até agora bispo de Ratisbona (Baviera alemã). Gerhard Ludwig Müller, 64 anos, parece um duplo de Ratzinger pelo percurso de intelectual, pela atitude aberta aos tempos mas intransigente na doutrina da Igreja, pelo conservadorismo moral e audácia no pensamento.

Algo mexe no Vaticano, depois das polémicas dos últimos meses, que incluíram a divulgação pública de cartas pessoais dirigidas ao Papa. Bento XVI parece querer retomar a iniciativa: nas últimas semanas, nomeou vários responsáveis de organismos da Cúria Romana.

O novo prefeito é a escolha mais importante. Preside ao organismo que vigia a ortodoxia católica, substituindo o cardeal William Levada, dos Estados Unidos, que abandona o cargo por razões de idade e deixa dois temas para resolver: o relatório sobre a actividade da Conferência das Superioras das Religiosas dos EUA e a eventual reintegração dos tradicionalistas no seio da Igreja Católica (ver textos ao lado). Também a harmonização das práticas dos bispos em relação aos abusos sexuais do clero será prioritária.

Na semana anterior, houve outra nomeação de destaque: a própria CDF, ainda presidida pelo cardeal Levada, anunciou a escolha do norte-americano Augustine Di Noia para vice-presidente da Comissão Pontifícia Ecclesia Dei, cuja tarefa é negociar com os integristas lefebvrianos a sua hipotética reintegração na Igreja.

A escolha de Di Noia para a Ecclesia Dei, que funciona no âmbito da CDF, foi justificada pelo seu perfil. O arcebispo conhece bem as "questões doutrinais" relativas ao processo e a "correcta interpretação do Concílio Vaticano II", tema central da cisão integrista.

Di Noia goza também, acrescenta a nota de nomeação, de um "amplo respeito" junto das comunidades judaicas, o que pode ajudar a resolver os problemas criados precisamente por cedências aos integristas - como a restauração de uma oração que falava dos "pérfidos judeus" que mataram Jesus. A oração foi substituída pelo pedido de que os judeus reconheçam em Jesus "o salvador de todos os homens".

Será sob a direcção de Ludwig Müller que Di Noia irá trabalhar. Müller, tal como o actual Papa, é oriundo da Baviera católica e tem uma produção académica intensa. Publicou mais de 400 livros e artigos, entre os quais as 900 páginas da sua obra mais importante, Katholische Dogmatik. Für Studium und Praxis der Teologie (Dogmática Católica. Para o Estudo e a Prática da Teologia), com sete edições e traduções em várias línguas.

Futuro cardeal

Müller, que com este cargo garante a nomeação como cardeal num próximo consistório, foi, aos 38 anos, um dos mais jovens professores da Universidade de Munique. É ele o editor, em alemão, das Obras Completas de Ratzinger, o que lhe valeu uma proximidade pessoal ao Papa - o que terá sido decisivo na escolha de Bento XVI. Ratzinger esteve na sua ordenação como bispo, em 2002.

É activo no diálogo ecuménico com as igrejas protestantes da Alemanha - é vice-presidente da Associação das Igrejas Cristãs do país. Os críticos apontam-lhe o que consideram ser uma concepção demasiado hierárquica do cargo de bispo, o afastamento de leigos críticos e o não reconhecimento das causas estruturais na origem dos abusos sexuais.

Em 1977, a sua tese de doutoramento foi dedicada a Dietrich Bonhoeffer, pastor protestante morto pelos nazis. Aos luteranos, Ludwig Müller propôs já que reabilitem também os católicos que criticaram Lutero, tal como a Igreja Católica encara "positivamente" o iniciador da Reforma protestante desde há 80 anos.

Do outro lado, os integristas não perdoam a Müller o facto de ter sido aluno do peruano Gustavo Gutiérrez, de 84 anos. Müller nunca escondeu a sua amizade com Gutiérrez, fundador da Teologia da Libertação, que considera um dos seus mestres e com quem escreveu, em 2004, Ao Lado dos Pobres.

O mestre Gutiérrez

Foi o livro de Gutiérrez Teologia da Libertação, de 1972, que baptizou a corrente teológica latino-americana que faz a leitura do evangelho a partir da realidade dos mais pobres. Anualmente, desde 1998, o novo prefeito da CDF vai ao Peru e lecciona na Universidade Católica de Lima, ela própria sujeita a vigilância por parte do Vaticano, e viveu algum tempo com camponeses numa zona rural.

Sobre o seu mestre peruano, diz Müller: "A teologia de Gutiérrez é ortodoxa porque é "ortoprática". Ela ensina-nos o bom modo de agir como cristão a partir da verdadeira fé."

Enquanto prefeito da CDF, entre 1982 e 2005 (quando foi eleito Papa), Ratzinger foi muito crítico da teologia da libertação. Condenou posições de alguns dos seus teólogos mais importantes. As obras de Gutiérrez foram passadas a pente fino pela CDF, mas apenas lhe foi pedido que alterasse frases. Pelo contrário, o brasileiro Leonardo Boff viu condenadas várias teses do seu livro Igreja, Carisma e Poder, o que o levou a abandonar o sacerdócio e a ordem franciscana.

Em Dezembro, no L"Osservatore Romano, o jornal do Vaticano, o então bispo de Ratisbona pedia "uma autêntica teologia da libertação" e criticava, na linha de Ratzinger, a tendência de politizar a teologia e reduzir a Igreja a uma actividade terrestre. Mas, acrescentava, a história da aliança entre Deus e a humanidade "é uma história de libertação, com uma opção sempre mais evidente de Deus pelos pobres, os sofredores (...), trazendo nela uma ética."

A posição de Ludwig Müller em relação aos integristas é inequívoca. Em 2009, quando o Papa levantou a excomunhão sobre os quatro bispos lefevbrianos, Müller afirmou que isso nada tinha a ver com uma concessão jurídica para facilitar o acolhimento dos opositores do Concílio. Citado pelo jornal francês La Croix, disse: "As opiniões extremas, tradicionalistas ou modernistas, nas margens da Igreja, acabam por vezes por se anular umas às outras. Em vez de cultivar atitudes agressivas contra o Papa e os bispos, quando eles não partilham a opinião de grupos marginais, cada católico deveria pensar, escutar e agir em unidade com a Igreja."

Não será de esperar, por isso, nenhuma revolução com Ludwig Müller à frente do organismo que vigia a ortodoxia católica. Mas o novo prefeito pode vir a ter uma atitude mais conciliadora.

O caso das freiras americanas

A Conferência de Superioras de Religiosas (Leadership Conference of Women Religious ou LCWR), dos Estados Unidos, foi chamada à pedra pela Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), do Vaticano, pelas posições consideradas demasiado liberais em temas como a ordenação de mulheres, o aborto, a eutanásia ou a homossexualidade.

São temas comuns nas divergências entre grupos católicos e a hierarquia eclesiástica, e que estará na agenda de Ludwig Müller. O conflito veio ao de cima a 18 de Abril, quando a CDF publicou um relatório condenando as tomadas de posição daquela federação, que representa 57 mil das 68 mil freiras dos EUA. Ao mesmo tempo, o relatório exigia uma mudança profunda na orientação do organismo.

Antes da assembleia anual da federação de religiosas, que decorrerá de 7 a 11 de Agosto, em Saint Louis (Missouri), o último episódio do conflito foi um encontro, a 12 de Junho, entre responsáveis da LCWR e o ainda prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal norte-americano William Levada. Este estava acompanhado do arcebispo de Seattle, Peter Sartain, nomeado pelo Vaticano para conduzir as mudanças na federação das religiosas.

Depois da reunião, o Vaticano veio dizer que a conversa correu numa "atmosfera de abertura e cordialidade". As freiras não fizeram, no entanto, a mesma avaliação. Citadas pelo jornal francês La Croix, as irmãs Pat Farrel, presidente da federação, e Janet Mock, reconheceram que o encontro decorreu "com abertura e sinceridade". Mas ele foi "difícil", acrescentavam, por causa dos "diferentes pontos de vista que os responsáveis da Congregação para a Doutrina da Fé e as representantes da LCWR têm sobre os temas levantados no relatório".

As duas responsáveis máximas da LCWR afirmavam ainda que as acusações do relatório não têm fundamento e que o inquérito conduzido pela hierarquia foi parcial e pouco transparente. Numa entrevista ao semanário norte-americano National Catholic Reporter, a 1 de Junho - antes do encontro no Vaticano - a irmã franciscana Pat Farrel dizia que o relatório continha "más interpretações" sobre a LCWR e a sua vida.

Pat Farrel acrescentava que o facto de as religiosas falarem de tais problemas não significava que fossem infiéis à Igreja. "Isso não é verdade. E não é justo. De facto, é um sinal da nossa mais profunda fidelidade à Igreja. São questões que o povo de Deus precisa de levantar, que precisamos de conversar, num clima de diálogo genuíno."

Mas, acusava, "esse clima nem sempre existe". E acrescentava: "Queremos fielmente levantar questões preocupantes, mas não queremos fazer isso de uma forma que polarize ainda mais. E esse é um caminho delicado."

A salvação é para muitos ou para todos?

O folhetim da aproximação do Vaticano aos integristas lefebvrianos não teve ainda o final feliz que o Papa Bento XVI esperava. Mas, pelo meio, apareceu outra polémica indirectamente relacionada com esse processo: saber se o ritual da missa católica deve dizer que a salvação de Jesus é "para muitos" ou "para todos".

Parece bizantino, mas não. A 30 de Abril, o Papa alemão enviou aos bispos do seu país uma mensagem em que determina que a expressão do missal latino pro multis (por muitos), usada na consagração do vinho na missa, seja traduzida pela fórmula "por muitos" e não "por todos" como acontece em várias línguas.

Não é apenas um pormenor de tradução. No livro Jesus de Nazaré (2011), o próprio Bento XVI discute a questão, perguntando se Cristo não morreu por todos e se a expressão "por muitos" não significa um retrocesso na herança do Concílio Vaticano II (assembleia de todos os bispos do mundo que, entre 1962 e 65, encetou várias reformas da Igreja).

O Papa Ratzinger demarca-se dos tradicionalistas, afirmando que "a universalidade da salvação não pode ser contestada, pois pertence às verdades fundamentais" da fé cristã. Mas, acrescenta, ela deve ter a adesão livre de cada um. Por isso, traduzir o latim pro multis pela expressão "por todos" não exprime essa escolha individual. Uma tese que retoma o que o então cardeal Ratzinger escrevia em 2000, na declaração Dominus Iesus: dizer que Cristo morreu por todos não significa que a pertença à Igreja não seja necessária para a salvação.

A tradução "por todos" é contestada pelos integristas, que consideram que a salvação é apenas para os membros da Igreja - ao contrário do que entendeu o Concílio.

Este é mais um detalhe no processo entre o Vaticano e os integristas. O Papa quer estabelecer, dentro da Igreja, uma estrutura especial para a Fraternidade Sacerdotal S. Pio X (FSSPX), mesmo se a ideia é contestada por muitos sectores, incluindo bispos franceses e alemães.

Os últimos episódios revelaram divisões na fraternidade. O superior, o bispo Bernard Fellay, é o único entre os seus pares interessado em responder positivamente ao Vaticano e ao Papa. Os outros três bispos da FSSPX - Alfonso de Galaretta, Bernard Tissier de Mallerais e Richard Williamson, este último um negacionista do Holocausto - consideram que "desde o Vaticano II as autoridades da Igreja têm-se desviado da verdade católica e, hoje, mostram indícios de se manterem fiéis às doutrinas e às práticas conciliares".

A boa notícia chegou de Israel

De Israel chegou uma boa notícia para o Papa e o Vaticano esta semana: em Jerusalém, o Yad Vashem, o memorial às vítimas do Holocausto, alterou o texto que acusava o Papa Pio XII (1939-1958) de ter silenciado o massacre dos judeus durante a II Guerra Mundial.

Junto à fotografia de Pio XII está agora um texto que, anunciou o museu e memorial, tem em consideração as "investigações dos últimos anos" - entre as quais um simpósio promovido pelo próprio Yad Vashem em 2009. O novo texto dá uma imagem mais "complexa" da actuação de Pio XII, que diz ser objecto de debate.

O Papa Eugenio Pacelli não denunciou "explicitamente" o genocídio dos judeus, lê-se no documento. Mas, na sua rádio-mensagem do Natal de 1942, Pio XII falou das "centenas de milhares de pessoas que, sem qualquer culpa da sua parte, por vezes só por causa da sua nacionalidade ou raça, se vêem destinadas à morte ou a um extermínio progressivo".

E, diz ainda o texto, as acções da Igreja Católica permitiram salvar "um importante número" de judeus. A mudança foi bem acolhida pelo Vaticano, naturalmente, mas também na Pave the Way (PTW), uma fundação americana vocacionada a criar pontes entre religiões, incluindo a recolha de documentação sobre o papel de Pio XII (www.ptwf.org). Gary Krupp, judeu nova-iorquino e presidente da PTW, comentou à agência Zenit que "não há uma base documental para nenhuma das acusações" feitas a Pio XII. E contou que, recentemente, a fundação descobriu uma carta do então cardeal Pacelli, de 1939, em que o futuro Pio XII tentava obter vistos para os 200 mil judeus que restavam na Alemanha, após a Noite de Cristal.

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