O mar nosso de cada dia

Tenho pena do padre Domingos.

Quando este sábado terminar ecoarão sinos e ele anunciará, ao primeiro minuto de domingo, a ressurreição de Cristo na igreja em forma de barco. Mas ele sabe que, entre os seus, há corações apertados, depois do naufrágio, em Quinta-Feira Santa, de um outro barco, o Mar Nosso. Talvez os familiares do poveiro Bernardino Bicho ou do caxineiro Sebastião Maciel, os sobreviventes, acreditem, hoje mais do que nunca, na ressurreição. Mas por muito que nos tenham ensinado que o espírito sobrevive, também ele, à morte, na capela mortuária os corpos de António Abel Cascão da Silva e José Esteves Faria Novo são uma provação para os familiares. Em dia de ressurreição, eles velam os seus mortos. Cristo lhes perdoe se, por um segundo, duvidarem da sua fé.

Aqui, fomos todos ensinados a acreditar. E mesmo os que, vida fora, foram soltando as amarras da religião, percebem a alegria com que festas como a Páscoa são vividas nas Caxinas. Paróquia grande demais para os ainda assim muitos compassos. Com gente demais para permitir algo que não seja uma oração, água benta e um aleluia rápido, atirados a correr por parte daquelas equipas que carregam um Cristo crucificado, mas ressuscitado, crêem, nos braços, quilómetros e quilómetros. E essa alegria perdura, e segue, pelos pinhais fora, no piquenique de Dia do Anjo. Uma tradição que estende o almoço de família de domingo para a segunda-feira seguinte, que é festiva também, sempre que a meteorologia o permite.

Mas desta vez, nem é tanto a chuva, mas as lágrimas de alguns, o que nos impele a ficar por casa nessa segunda-feira em que, normalmente, Caxinas se transforma num deserto sem gente. Que o padre Domingos vai enterrar nesse dia mais dois dos seus náufragos. São bem mais de 90, quase a chegar aos 100, se o mar entregar os dois que ainda guarda consigo. E 100 é número redondo, que ninguém deseja, mas que todos desconfiamos que ele, nem 40 anos levados a pastorear esta gente, vai atingir mais cedo do que tarde. Por isso tenho pena dele. Mesmo sabendo que não duvida da ressurreição, acredito que, como homem bom, ele, como nós, preferiria ser conhecido por celebrar a vida. E não ser, ano após ano, manchete nos jornais pelos pescadores que leva a enterrar.


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