O ilusório mundo novo da ADSE

A anunciada e sempre adiada reforma hospitalar tem de sair de vez da gaveta.

“Um beneficiário da ADSE entra num gabinete de consulta num hospital privado e pergunta: em que consulta estou? Estranhando a pergunta, o médico questiona o doente que esclarece: é que marquei três consultas da especialidade para este dia e preciso de saber em qual estou para saber de que me hei-de queixar!”

Este episódio anedótico retrata o ilusório mundo novo da ADSE: consultas a preço de saldo complementadas com muitos meios de diagnóstico para fins de reembolso. Consultas e exames que se vão repetindo porque não há qualquer controlo médico e administrativo, nem limite de despesa para os beneficiários para além dos co-pagamentos.

E não é só a irracionalidade económica do modelo que nos deve preocupar. É, também, quiçá ainda mais, a potenciação do erro médico resultante do sobre-diagnóstico induzido por exames complementares desnecessários, que se sabe poder conduzir a situações indesejáveis de sobre-tratamento.

Face a esta realidade, não surpreende que o Ministro da Saúde nos venha dizer que os 3,5% do salário que os beneficiários descontam hoje para a ADSE não são demais para responder às despesas crescentes do subsistema público para com o setor privado. Conviria acrescentar, que tal sucede apesar de, desde 2010, a ADSE ter deixado de contribuir financeiramente para o SNS, poupando assim cerce de 500 milhões de euros/ano (1). Mesmo desonerado, o subsistema já hoje ameaça ser financeiramente insustentável.

Surpreende sim que, ao invés de esclarecer e questionar a racionalidade de um sistema com estas características, o Governo considere alargar o universo público dos beneficiários da ADSE. Intenção rapidamente secundada por quantos pretendem utilizar as “virtudes” consumistas da ADSE para subverter o modelo de SNS constitucionalmente consagrado, propondo o seu alargamento a todos quantos desejem aderir a este subsistema público.

Omitem, porém, que a ADSE assemelhando-se mais a uma mútua do que a um seguro de saúde tradicional, só é sustentável num universo fechado. Em concorrência com as Seguradora ver-se-ia desnatada dos beneficiários de baixo risco e com maiores rendimentos, os prémios subiriam em flecha tornando-se rapidamente insolvente. De resto, num contexto de liberdade de escolha, não há história de Mutuas que tenham sobrevivido às leis do mercado de seguros, como sucedeu, por exemplo, nos EUA. Não tenhamos pois ilusões, a seguirmos este caminho a nossa Saúde ficará a cargo das Seguradoras e de um SNS ainda mais debilitado.

Perguntar-se-á, será que tudo está bem com o SNS e nada justifica este desejo de liberdade de escolha do médico e onde se pretende ser tratado? Sendo defensor do modelo de SNS que temos, respondo abertamente não, não está tudo bem. Um SNS que não consegue garantir um médico de família a cada cidadão, está seguramente doente. Colmatar esta falha é, pois, a prioridade das prioridades.

Mas não chega, a anunciada e sempre adiada reforma hospitalar tem de sair de vez da gaveta. Não podemos continuar a conviver com tempos de espera clinicamente inaceitáveis para consultas de especialidade podendo, nalguns casos, ultrapassar o ano! O processo de referenciação tem de ser revisto e os hospitais avaliados pelas suas práticas. A progressiva separação de sectores, visando eliminar conflitos de interesses que todos sabemos existirem a coberto de códigos de ética permissivos, não pode ser mais adiada.

É, também, preciso prosseguir com reformas conducentes a uma maior integração de cuidados, maior transparência dos resultados com avaliação comparativa dos mesmos por sectores de atividade, visando melhorar a eficiência global do SNS.

Bem sei que todas estas medidas exigem financiamento e que estamos limitados pelos constrangimentos do País. Porém, também sei que há 500 milhões de Euros que desde 2010, anualmente, foram sub-repticiamente retirados ao SNS para alimentar o sector privado através da eliminação das relações financeiras com os subsistemas públicos. Trazê-los de novo à esfera do SNS é, pois, uma opção política.

 

1) É subscrito um memorando de entendimento pelos Ministros das Finanças e da Administração Pública, da Saúde, da Defesa Nacional e da Administração Interna, com o objectivo de eliminar-se as relações financeiras entre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a Direcção-Geral de Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública (ADSE), o Instituto de Acção Social das Forças Armadas (IASFA), os Serviços de Assistência na Doença (SAD) da Guarda Nacional Republicana (GNR) e da Polícia de Segurança Pública (PSP). O Orçamento do Estado passa a financiar directamente o SNS. Como consequência deste memorando, a despesa da ADSE com o Serviço Nacional de Saúde passou de 420.585.000euros em 2009 para 49.974.200 em 2010.

Chefe de serviço de Cardiologia no Hospital de São João

Sugerir correcção
Ler 2 comentários