O dux e os estudantes falecidos da Universidade Lusófona

O único debate possível sobre este assunto é o debate sobre os limites da liberdade individual.

Permita-me, prezado leitor, que lhe fale de uma questão que conheço de perto: a integração de estudantes que iniciam o seu primeiro ano na universidade de um país estrangeiro.

Candidatura aceite, os novos alunos chegam à universidade – onde frequentemente passam a residir, pois no campus de uma universidade anglo-saxónica situam-se lado a lado edifícios para aulas, centros de investigação e dormitórios com cantinas – para iniciar uma nova vida. Esta vivência tem carácter académico – os professores ensinam, os alunos aprendem –, mas é muito mais. Para o caloiro, é um novo modo de estar no mundo que exige uma postura bem definida. Ao ingressar no campus, os novos alunos terão um confronto súbito com horários exigentes a cumprir; as novas matérias a assimilar exigirão uma maior independência de raciocínio; terão de se adaptar a conviver com colegas de países diferentes e culturas diversas; terão de partilhar quartos e casas de banho com desconhecidos; terão ainda de se movimentar num novo espaço físico, pois muitos optam por estudar num local diferente de onde passaram o ensino secundário.

Alterações que são profundas e terão, necessariamente, impacto não apenas neles, mas também nas famílias.

O que fazem as universidades – as universidades que merecem esse nome, pois são locais de transmissão de conhecimentos adquiridos por toda a humanidade – para integrar, como deve ser, os novos alunos? Algumas designam três dias no início do ano lectivo – três dias – para a integração do corpo discente. Dias em que os caloiros, acompanhados das famílias, dos namorados e namoradas, etc., participam em actividades comuns com vista a uma passagem “suave” – de facto cool – para o novo ambiente estudantil.

O que se faz nestes três dias? De facto, faz-se de tudo um pouco. O Programa de Orientação vai desde sessões de esclarecimento a diversas e inúmeras actividades lúdicas. É atempadamente colocado na Internet, onde são designados os temas a abordar, os respectivos locais de encontro e toda uma gama de espectáculos à disposição. Quem quiser pode levar três dias inteiros a passear-se de um lado para o outro no campus, a conviver saudavelmente, a divertir-se, a decidir quem quer ser. Há espaços para almoçar e jantar: uns são pagos pelos utentes, outros são pagos pela universidade.

Seguem-se alguns exemplos. Os alunos matriculam-se nas cadeiras que desejam frequentar (o leque à escolha é enorme) e vão, concomitantemente, dialogar com os professores que serão os seus supervisores ao longo do ano. Seguem-se as sessões de esclarecimento em que debatem todos os temas que se possa imaginar. Há sessões com um grande número de participantes em que a universidade apresenta, por exemplo, o seu programa desportivo. As sessões com um número reduzido de participantes (12 alunos, os pais, irmão, e namorados/as) têm um enorme interesse. Aí se debatem questões ligadas às cadeiras e às matérias – sempre em diálogo, pois aqui a chamada "conferência" não existe. A saber, por exemplo: o que se passa se o aluno entrega um trabalho copiado da Internet? Poderá ser expulso? Mas estas sessões vão muito para além do debate académico e focam-se em temas de carácter pessoal: desde sexo a drogas, à possibilidade de adquirir um cartão de crédito.

Questões que, à primeira vista, parecerão comezinhas, têm uma importância fundamental. Um caloiro poderá perguntar à mãe (presente na sala) se esta se vai sentir abandonada quando ele lhe disser que em vez de todos os dias apenas pretende, doravante, falar com ela duas vezes por semana. Os pais, por sua vez, têm também imensas perguntas. Que língua deverá o filho/a estudar, se quer um futuro num contexto internacional? Ou: quais são os contactos de emergência que a universidade coloca ao seu dispor?

As questões académicas regem-se pelos estatutos da universidade e o quadro moral de referência é bem delineado. E todos têm oportunidade de o conhecer.

De suma importância é a Associação de País, um órgão para o qual o encarregado de educação poderá ser eleito mediante candidatura. Os candidatos estabelecem na Internet uma plataforma de ideias – em que cada um decide os temas em que a universidade poderá melhorar a sua actuação – e, se eleito, fará parte de um órgão académico com voz activa. Uma questão que tem sempre enorme interesse é o número de horas de supervisão semanais a que o aluno tem direito.  

Numa universidade com cerca de 5500 alunos matriculados em licenciaturas, haverá cerca de 1100 novos alunos em cada ano. Todos querem participar, hora a hora, destes três dias. E porquê? Porque é convidativo. Porque é elucidativo. Porque é uma forma de interacção. Para todos – tanto alunos como pais – há interrogações, dúvidas e anseios que necessitam de debate e esclarecimento.

Sabem quem orienta os caloiros e as suas famílias nas sessões cujo número de participantes é restrito? Alunos voluntários de anos mais avançados que são criteriosamente escolhidos e treinados pela própria universidade durante todo um ano lectivo para responder às questões em debate.

Os três dias acabam com um discurso do presidente da universidade – geralmente cheio de humor – em que se colocam os desafios do mundo moderno. Seguem-se diversas sessões de música, teatro ou ballet para acabar esta longa praxe.

O que me leva à questão colocada no título desta crónica, um assunto que tenho seguido com enorme apreensão, embora não conheça nenhum dos visados. Mas tenho visto os pais – e o seu advogado – falar na televisão com uma enorme dignidade. Admiro-lhes a coragem. Vejo aquela dor, reparo no sofrimento. E interrogo-me sempre: o que se passou na praia do Meco naquela noite fatídica?

Fala-se no dux – o único sobrevivente – uma designação que desconheço. Fala-se em praxe. Que praxe? Porque foram os alunos da Universidade Lusófona a meio da noite para uma praia deserta vestidos de capa e batina? A que título? Estariam os alunos de costas voltadas para o mar? Seria o dux o único de frente para o mar – a dirigir uma qualquer operação ignóbil – o que lhe teria dado, talvez, a possibilidade de ver surgir uma grande onda e fugir a tempo?

Li a única entrevista que o dux deu à comunicação social. Nada referiu que ajudasse a desvendar o caso. Nem, ao que sei, falou com as famílias das vítimas, a única conversa que deveria ter tido lugar, à porta fechada, a colmatar a intimidade do desgosto sofrido. Se nada há a esconder, apenas a verdade é fonte de reconforto. Mas o dux decidiu vir para os meios de comunicação social, como que a justificar-se.

Ficam as praxes das universidades portuguesas. Práticas alarves, primitivas, ao pior estilo das touradas. Já vi raparigas de joelhos a mando de um idiota qualquer. Já vi jovens de cabelos compridos, cheios de lama e excrementos, de olhos baixos. Já vi rapazes a serem espezinhados, a sorrir alarvemente.

Para quê? É a isto que se chama em Portugal a integração universitária? O sentimento de pertença a uma universiadade deriva de práticas humilhantes, obsoletas e cruéis? Que profissionais serão estes, no futuro? Em que quadro moral de referência habitam e se movem?

Em conversa recente, perguntei a razão da permissão destas praxes em Portugal. A resposta de um professor universitário foi que as instituições académicas não têm força; que as associações estudantis gostam das praxes. E que os detentores do poder universitário têm medo dos estudantes. Mas medo de quê? Dê acabar com a barbárie? De cercear liberdades?

É que o único debate possível sobre este assunto é o debate sobre os limites da liberdade individual, os condicionalismos a que todos estamos sujeito. E é, acima de tudo, um debate sobre o enquadramento que uma universidade deverá dar aos seus alunos, àqueles que as frequentam.

Ademais, só a verdade sobre o que se passou na praia do Meco servirá a universidade. E a Justiça. Só um tribunal isento permitirá tirar elações transparentes. E só assim poderá a sociedade encerrar este caso.

Muitos de nós estão atentos ao que se está a passar. E às famílias enlutadas, enviamos a nossa mais profunda solidariedade. Que a morte de filhos e filhas dilectos e amados, na flor da vida, não tenha sido em vão.

Investigadora convidada, The New School for Public Engagement, The New School, Nova Iorque, 2014 e 2015

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