“O dinheiro rege o mundo e o dinheiro está aqui”

O que têm em comum Joaquim, de Leiria, Rui, de Lisboa, Fernando, da Maia, Jorge, Nuno, Ricardo? O Brasil. São uma espécie de microcosmo da emigração portuguesa.

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Seis portugueses em Campinas: Fernando, Joaquim, Rui, Ricardo, Jorge e Nuno Nelson Garrido

“Estás maluco?” — Foi assim que os colegas de Rui Geraldes receberam a notícia de que ele decidira mudar-se para o Brasil. Era Outubro de 1999. Portugal estava na véspera de adoptar o euro e o salário mínimo no Brasil era de 175 reais, o equivalente a 54 euros no câmbio actual. Quase 15 anos depois, o gabinete de advocacia de Rui, em Campinas, a pouco mais de 100 quilómetros de São Paulo, acumula pedidos de vistos de trabalho de portugueses. “Nos últimos dois, três anos, 99% dos que vêm, vêm por necessidade, o que, na minha opinião, é um problema porque hipoteca um resultado de sucesso.”

Rui é amigo de Jorge, que é irmão de Ricardo, que agora conhece Nuno, que era empregado de Joaquim, que não conhecia Fernando, que trabalha para Jorge. Quase uma versão adaptada do início do poema Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade — “João que amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.

Mas estes seis portugueses reunidos para uma conversa com o PÚBLICO, num restaurante de um bairro tradicional de Campinas, são uma espécie de microcosmos da emigração portuguesa hoje no Brasil.

Rui, o advogado, é uma espécie de elo entre todos. Mas foi Jorge Martins, director de uma multinacional belga, quem reuniu todos à volta da mesa onde se bebe caipirinha. Jorge chegou em 2008. Foi uma decisão difícil. “A minha empresa me convidou, eu não queria vir, minha mulher achou que valia a pena tentarmos. Decidi ouvi-la. Fiz parte da última leva antes da crise.”

Jorge Martins trabalha para a Dhollandia, empresa belga que produz plataformas elevatórias, sistemas de cargas e descargas e, no Brasil, os elevadores nos autocarros para pessoas portadoras de deficiência. “Estou muito feliz, de ano para ano dobramos as vendas e o valor do facturamento [facturação], estamos fazendo uma ampliação de alguns milhões na nossa nova fábrica, o nosso mercado aqui continua a crescer.”

Hoje, a representação em Portugal é um pequeno armazém em Vila Franca de Xira e a filial do Brasil deixou de reportar à antiga sede. “Agora falamos directamente com a matriz na Bélgica devido ao volume do facturamento ter superado o de Portugal. O filho tornou-se maior que o pai.”

Jorge também explica que os portugueses com qualificação acabam por ser mais procurados pela multinacionais que querem estabelecer-se no Brasil. “Aqui há um grave problema que é a falta de mão-de-obra especializada e as empresas querem esta especialização. O português é mais próximo do brasileiro, tem mais facilidade de entendê-lo, e sai mais barato do que a mesma mão-de-obra de outros países.”

É justamente o que faz Nuno Oliveira, que emigrou em 2009 para abrir uma construtora. Todos os seis cargos de topo da Liz Construtora são ocupados por portugueses. Nuno tem mais de 80 funcionários e a sua construtora especializou-se na área industrial.

Campinas tem filiais de pelo menos 50 das 500 maiores multinacionais do mundo. Nuno considera que o seu negócio está “no auge”. Foi responsável pela ampliação das fábricas da Toyota, Volkswagen, Honda, Schering. O ex-encarregado de obras começou a sua aventura no Brasil em 2007, quando a construtora onde trabalhava o mandou para Campinas por uma semana. Ficou um ano. Conheceu uma brasileira, apaixonou-se. Decidiram que iam ficar juntos, não sabiam se no Brasil ou em Portugal.

“Vim com a cara, com a coragem e amor no peito” — todos se riem, mas o advogado Rui interrompe, pragmático. “Ia abrir o seu negócio em Portugal ou aqui? O Nuno em Portugal não tinha futuro. A questão do amor você vê no cinema e dura uma hora e meia. Se você não procurar o seu espaço profissional de uma forma séria e competente você não vai conseguir alimentar o seu amor. É uma questão objectiva e pragmática e económica.”

“Terra pequena não faz homem grande”
Uma questão que Joaquim Rodrigues, de Leiria, conhece bem. Era ele o patrão de Nuno. Este empresário da construção civil está há 35 anos na “ponte aérea” entre Portugal e Brasil. Em 2000, chegou a fazer 30 viagens entre os dois países. Tinha dias em que chegava no voo das seis da manhã e partia no das seis da tarde. Diz-se um apaixonado pelos “trópicos” desde os tempos em que serviu na tropa em Angola. “Só não vim mais jovem porque meus pais choraram.”

Hoje, aos 62 anos, mudou-se por necessidade. A crise em 2008 acabou com o seu negócio em Portugal. “Tudo correu mal. A construção não dá mais. Em Portugal, a construção tem no máximo 20 anos mais de sobrevida, depois acaba. Terra pequena não faz homem grande. Não vamos ter ilusões, Portugal é maravilhoso, bom para morar, bom para passear, mas não para ganhar dinheiro. É aquela velha história dos portugueses de 500 anos atrás. Eu sempre disse aos meus amigos que o futuro dos portugueses estava em Angola e no Brasil.”

A família está dividida. A mulher dá aulas em Lisboa, onde ficou com o filho mais novo. Ele está em Campinas, com o filho mais velho, desde o ano passado. Mas Joaquim não tem dúvidas. “Na Europa não há filhos e sem juventude não há progresso. O Brasil é um país de jovens, de progresso.”

Ricardo Martins, de 32 anos, é o mais jovem do grupo e também foi o último a chegar. Há um ano veio para o Brasil, depois de seis meses no desemprego. “Cheguei a ter contratos diários [em armazéns do Norte]. A situação já era muito precária, lutei bastante contra a ideia de vir, mas hoje estou completamente adaptado e feliz.” Foi o irmão, Jorge Martins, quem o chamou e agora é gerente de operações na Dhollandia.

Foi também Jorge quem chamou Fernando Castro, técnico de manutenção. Ele já estava em Goiás, casado com uma brasileira. Jorge e Fernando tinham sido vizinhos na Maia. “Se eu estivesse em Portugal neste momento, estaria em dificuldades. O Brasil é um país bom de se viver. Cada vez mais amigos pedem ajuda para vir, mas é difícil conseguir visto de trabalho”, conta Fernando.

O pragmatismo do advogado Rui volta à cena. “Esta mesa não é representativa da situação dos portugueses que tentam vir. O teu irmão, Jorge, está aqui de forma ‘limpinha, legal’, mas há muita gente que tenta entrar ilegalmente. Basta ver o aeroporto de Viracopos [Aeroporto de Campinas], é comum ter de 10 a 12 pessoas barradas quando tentam entrar para trabalhar na construção civil. O Brasil não aceita mão-de-obra não qualificada.”

Nuno concorda. “O Brasil é muito proteccionista, o pedreiro, o carpinteiro não têm vez. Mas os quadros médios e de nível superior, sim.” Rui completa: “Se fosse fácil mais da metade de Portugal já teria vindo.”

Sem preconceito
Os portugueses também enfrentam muita burocracia. Antes de vir, Ricardo telefonou ao irmão desesperado porque as autoridades brasileiras exigiam um documento que não existia, um documento que provasse que ele não tinha filhos. “Quem é que dar-me-ia um certificado por não ter filhos?”

Mas para todos há mais vantagens que desvantagens. Aqui não sentem preconceito. “Na Alemanha, onde a minha mãe trabalhou, os portugueses eram tratados como lixo, aqui a gente entra em todo o lado e é tratado com respeito, é muito positivo”, diz Jorge, com orgulho. E confessa que já não consegue mais falar o português “correcto”.

Rui provoca: “Como é que você vai ter preconceito com chinês, palestiniano, israelita vivendo lado a lado? Como é que você vai ter preconceito num país assim?” Quanto ao contrário, já têm mais dúvidas. Acham que em Portugal há mais preconceitos em relação aos brasileiros. Mas que a situação está a mudar e muito pela força do dinheiro. “Quando um brasileiro entra numa loja, em Portugal, gasta cinco mil euros e diz que volta no dia seguinte para comprar mais. Um vendedor já não o trata mal como antigamente. O dinheiro rege o mundo e agora o dinheiro está aqui, vai daqui para lá”, conclui Jorge.

No fim desta conversa voltamos aos versos finais da Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade — “João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.” Os versos de Drummond servem para uma adaptação pouco menos dramática: Joaquim veio de vez para o Brasil. Nuno apaixonou-se. Fernando casou-se. Jorge dobrou a facturação. Ricardo não quer mais voltar. Rui ajuda quem mais quiser vir para fazer parte desta história.

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