Os cardeais da periferia entraram no Vaticano

Manuel Clemente e Arlindo Furtado, criados cardeais neste sábado, recuperam a importância das periferias. O bispo cabo-verdiano diz que a escolha de uma "maioria de países considerados periféricos pode significar” que o Papa queira uma "Igreja mais inclusiva”.

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D. Manuel Clemente Reuters
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O patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, criado cardeal pelo Papa Francisco neste sábado, não tem dúvidas de que um dos grandes desafios que a Igreja enfrenta é o de “chegar a todos, principalmente às periferias geográficas”. Os últimos dias no Vaticano foram de encontros e cerimónias, não só para discutir a reforma da Cúria, mas também para a criação de novos cardeais

“O grande desafio para a Igreja de hoje é o que o Papa Francisco define como ‘programa para os próximos tempos’ na exortação apostólica ‘A Alegria do Evangelho’: chegar a todos, principalmente às 'periferias’ geográficas, sociais e culturais, mobilizando para isso todas as comunidades cristãs, famílias, paróquias, institutos e associações”, disse por email Manuel Clemente, antes de partir para o consistório público para a criação de cardeais, que termina hoje. Antes destas cerimónias, houve um consistório sobre a reforma da cúria e uma reunião do Conselho dos Cardeais, conhecido como “C9”.

A expressão “chegar às periferias”, que tem sido tantas vezes veiculada nas páginas dos jornais e repetida por vários membros da Igreja, tem tido uma concretização concreta com este Papa. Cabo Verde, por exemplo, terá um cardeal pela primeira vez. Ao PÚBLICO, também Arlindo Furtado, bispo de Santiago, recupera as mesmas palavras: “No mundo actual, muito marcado pelo individualismo exacerbado, pela ganância, pelo consumismo e pela indiferença, a Igreja precisa de ser sinal visível e coerente de serviço humilde, fraterno e abnegado aos homens e mulheres do nosso tempo, testemunhando o amor de Cristo para com todos, sobretudo para com os mais pobres, para as periferias geográficas e existenciais, como costuma dizer o Papa Francisco.”

Manuel Clemente não hesita em considerar que “a escolha dos novos cardeais insere-se perfeitamente no programa do Papa Francisco de centralização das periferias”: “Os cardeais ‘apoiam’ o Papa (é o que cardeal quer dizer) no exercício do seu ministério romano, ao serviço da Igreja universal. Ao escolher cardeais de pontos mais ou menos longínquos, onde a Igreja desponta ou já cresce, o Papa reforça a dimensão evangelizadora do colégio cardinalício e da própria Igreja no seu todo”.

Também Arlindo Furtado sublinha que “a nomeação de novos cardeais, sendo a maioria de países considerados periféricos, pode significar que o Papa Francisco queira promover uma Igreja mais inclusiva, mais realista e mais universal, na medida em que todas as regiões da Igreja e do mundo têm algo a dar e a receber, para o enriquecimento de toda a igreja”: “Penso que seja um sinal de abertura a espaços eclesiais cuja voz e experiência neste século poderão contribuir para um futuro optimista e plural da Igreja-Comunhão”, escreve também.

O Papa Francisco anunciou a 4 de Janeiro a criação de 15 cardeais eleitores, provenientes de 14 países. Manuel Clemente e Arlindo Furtado são os novos cardeais eleitores de língua portuguesa, ou seja, têm direito de voto na escolha do líder da Igreja Católica. Do colégio cardinalício fazem ainda parte outros cardeais eleitores de língua portuguesa, como por exemplo Monteiro de Castro, para quem os novos nomes escolhidos pelo Papa “serão elementos importantes” nos trabalhos.

Mas entre os eleitores lusófonos, no total de sete, contam-se ainda os cardeais brasileiros Raymundo Damasceno Assis (arcebispo de Aparecida), João Braz de Aviz (prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica), Odilo Pedro Scherer (arcebispo de São Paulo) e Orani João Tempesta (Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro). Para este último, o conjunto dos novos cardeais é um sinal de pluralidade: “A criação de novos cardeais pelo Papa Francisco fortalece e demonstra a universalidade da igreja, aumenta a pluralidade dos pensamentos e reflexões dos mais variados temas discutidos pelo colégio cardinalício, além de nos ajudar a compreender a realidade vivida por cada um.” Realidades que serão diferentes: se em Portugal, a Igreja se vê a braços com a crise e as novas formas de pobreza; em Cabo Verde, há questões relacionadas, entre outras, com imigração e, no Brasil, expandem-se, por exemplo, as igrejas evangélicas.

De acordo com a agência Ecclesia, 300 pessoas acompanham o patriarca de Lisboa neste consistório. Em representação do Governo português, estiveram o vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, e o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier (ver texto ao lado).

Percurso de Manuel Clemente
O patriarca de Lisboa soube que ia ser cardeal quando estava a “tratar do carro” numa estação de serviço. “Estava numa estação de serviço a tratar do carro quando tocou o telemóvel e era uma amiga minha a dizer: 'Olhe, eu estou aqui a ouvir o Papa em Roma a dizer que o senhor é cardeal, os meus parabéns!’ – ‘Ah sim! Está bem, então vamos a isso!’", contou à agência Ecclesia.

Manuel Clemente tem 66 anos e nasceu em Torres Vedras. Formou-se em História, ingressou no Seminário Maior dos Olivais, licenciou-se em Teologia e doutorou-se em Teologia Histórica. Foi ordenado sacerdote a 29 de Junho de 1979. Foi vice-reitor e reitor do Seminário Maior dos Olivais. Aos 51 anos, é nomeado bispo titular de Pinhel e auxiliar do patriarcado de Lisboa. Em 2007, é nomeado bispo do Porto. Entre outros cargos que já ocupou, é actualmente presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Em 2009, foi Prémio Pessoa.

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