Nova lei do álcool não alterou hábitos de consumo entre os menores

ASAE detectou apenas cinco infracções relativas à venda de álcool a menores e instaurou 406 contra-ordenações, maioritariamente relacionadas com a falta de afixação dos avisos.

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Nova lei não parece ter feito abrandar o chamado "binge drinking" entre os jovens Cláudia Andrade (Arquivo)

Cerveja, bebidas brancas e shots: um ano depois da entrada em vigor da lei que proibiu a venda de bebidas espirituosas a menores de 18 anos e de todo e qualquer tipo de álcool a menores de 16, o consumo entre os jovens parece não ter sofrido quaisquer alterações. Ou seja, continua indiferenciado e à revelia das normas.

Entre as novidades introduzidas pela lei n.º 50/2013, a única que parece ter surtido efeito claro, segundo o subdirector do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), Manuel Cardoso, foi a da interdição da venda de bebidas alcoólicas nos postos de abastecimento de combustível, entre a meia-noite e as oito da manhã. “Não nos chegaram mais queixas, nem dos postos de combustível nem dos habitantes dessas áreas que se queixavam dos comportamentos dos jovens, portanto essa componente da lei parece ter sido conseguida ”, ressalvou, para acrescentar, porém, que, “dentro dos estabelecimentos, as entidades fiscalizadoras fizeram o seu papel de divulgação e de informação sobre a medida, mas, infelizmente, não foram muito além disso”.

“Nunca tive nenhuma fiscalização. Os miúdos andam aí, bebem o que lhes apetece nos bares, ou então trazem de casa dos pais: garrafas de whisky e de vodka… Nunca vi ninguém a pedir-lhes o bilhete de identidade”, confirma Júlio Moreira, do lado de dentro do balcão de um bar, num extremo da Rua das Oliveiras, no Porto. “Quem estiver atento, vê-os nos supermercados, a comprar cerveja ou outro tipo de álcool. O funcionário da caixa não os interpela, nem lhes pede identificação”, prossegue.

Além de ter proibido a venda de álcool em postos de abastecimento de combustível, nas auto-estradas e fora das localidades, e nas lojas de conveniência, entre as 0h e as 8h, a nova lei do álcool propunha-se proibir a venda de caipirinhas, vodka, gin, shots e outras bebidas brancas a menores de 18 anos. Já os menores de 16 anos viram, além disso, proibido o consumo de cerveja e vinho.

As coimas por incumprimento podem chegar aos 30 mil euros. E as autoridades de fiscalização passaram a poder decretar o encerramento dos estabelecimentos infractores durante 12 horas. Nos casos reincidentes ou tidos como mais graves, há sanções acessórias que podem incluir a interdição da actividade até dois anos. A lei prevê ainda que, nos casos de menores apanhados com intoxicação alcoólica, os pais ou encarregados de educação sejam notificados, bem como o centro de saúde ou hospital da área de residência. Tratando-se de um caso reincidente, os menores ficam inscritos nas listas dos núcleos de protecção de crianças e menores em risco.

Cinco infracções por venda ilegal
Um ano depois, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) instaurou 406 contra-ordenações. Mas a maior parte está relacionada com a falta de afixação da menção à proibição da venda de bebidas espirituosas a menores de 18 anos e de todas as bebidas alcoólicas a menores de 16 ou então com a falta de cumprimento dos requisitos relativos ao aviso. Apenas cinco infracções estavam relacionadas com a venda de álcool propriamente dita. Quanto à PSP e GNR, o PÚBLICO não obteve respostas atempadamente. O SICAD sim, mas, segundo o subdirector, Manuel Cardoso, os dados que até agora chegaram a este organismo “não apontam para nenhum retorno significativo”. Para este responsável, de resto, a lei tornou ainda mais difícil a acção das entidades fiscalizadoras. “Ficaram piores do que antes, desde logo por causa da diferenciação etária estabelecida na lei e das dificuldades de identificação da bebida que os menores estão a ingerir”, critica.

O presidente da Associação Nacional de Discotecas, Francisco Tadeu, concorda com a impossibilidade de garantir o cumprimento da lei por parte dos próprios estabelecimentos de diversão. “Os miúdos contornam completamente a lei. Pedem aos mais velhos para ir buscar as bebidas ao balcão e, por muito que uma pessoa quisesse, era impossível andar no meio deles a pedir bilhetes de identidade e a fiscalizar quem está a beber o quê”, esclarece, para acrescentar que não compete aos empresários “andar a fazer de polícias”.

Na altura em que a lei foi aprovada, e por considerar não haver “álcool bom e álcool mau”, o próprio presidente do SICAD, João Goulão, criticou a diferenciação etária que classificou como uma cedência aos interesses económicos do sector do vinho e da cerveja. Uns tempos antes, o actual ministro da Economia, Pires de Lima, que então presidia à Associação de Produtores de Cerveja, tinha qualificado como “disparatadas” as mudanças que vinham sendo defendidas pelo próprio secretário de Estado da Saúde, Leal da Costa, que começara por se propor fixar nos 18 anos a idade mínima para consumir todo e qualquer tipo de álcool. Mais tarde, Leal da Costa sustentaria que a diferenciação de idades resultou do “consenso possível” dentro do Governo.

As duas jovens que o PÚBLICO encontrou à mesa de um dos cafés mais procurados pelos estudantes do Porto não sabiam sequer da existência da lei. “Mas então os menores de 18 anos podem beber quatro litradas de cerveja e já não podem beber uma vodka?!”, estranha Rita Carvalho, para concluir: “Isso é 'muita' parvo. Álcool é álcool. E quem se embebeda com cerveja fica igualmente cego…” Por concordar com o argumento, Manuel Cardoso diz esperar que a lei possa ser alterada quando chegar a altura de apresentar ao Governo o estudo sobre a aplicação do novo regime, o que, nos termos da própria lei, deverá acontecer até 1 de Janeiro de 2015. “A nossa posição inicial, e a de inúmeros especialistas, foi a de que não fazia sentido essa diferenciação etária”, recorda, para sublinhar que os problemas sentidos na implementação da lei eram já expectáveis.

Conselho de Ministros não aprovou plano para 2013
O Fórum Nacional Álcool e Saúde, que agrega cerca de 70 instituições empenhadas em reduzir os danos causados pelo consumo nocivo do álcool, reúne esta quinta-feira em Loures para discutir a implementação do Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditivos e das Dependências 2013-2020. Mas os trabalhos deparam-se com uma dificuldade à partida: o Conselho de Ministros ainda não aprovou aquele documento. “O ano de 2013 foi de preparação, mandámos o documento para a tutela em Dezembro do ano passado, estamos à espera”, explica ao PÚBLICO o subdirector do SICAD.
Manuel Cardoso sublinha que “não está em causa a concordância do Governo com as medidas previstas no plano”, até porque se trata de “um documento muito consensual”. O que lamenta são as dificuldades criadas pelo atraso na aprovação do documento. “Sem a aprovação oficial, sentimo-nos muito mais inseguros. Todas as entidades que fazem parte do Conselho Interministerial [para os Problemas da Droga, das Toxicodependências e do Uso Nocivo do Álcool] comprometem-se a introduzir nos seus planos de actividades para 2014 as medidas propostas no plano, mas, não havendo aprovação superior, ficam alguns constrangimentos”, constata aquele responsável.

O documento apresenta como meta o aumento da idade média do início do consumo nocivo de álcool dos actuais 16 para os 17 anos até 2016 e para os 18 anos até 2020. Nessa mesma data, propõe-se reduzir dos actuais 51% para 36% a percentagem de jovens que iniciam o consumo de bebidas alcoólicas com 13 anos ou menos. No plano lê-se que, em 2011, houve 12 internamentos de crianças com menos de nove anos e de 16 pessoas com idades entre os 20 e os 29 anos por cirrose e hepatite alcoólica.

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