Nostalgia do que nunca existiu

Eu já tinha decidido encerrar o ano com um texto sobre os enviesamentos da nostalgia e os nossos problemas com a memória, e o Público, para me facilitar a vida, fez o favor de pôr de pé um dossiê especial comparando o ano de 2013 com o de 1993 e o de 1973.

Para uma das imagens de primeira página, a direcção escolheu até uma fotografia de 1988 de Alfredo Cunha, incluída no seu livro A Cortina dos Dias – precisamente uma das obras que mais tive presentes durante 2013, e que ilustra na perfeição aquilo que quero dizer.

O livro de Alfredo Cunha impressionou-me muito pela sua colecção de extraordinárias fotos de uma pobreza avassaladora, começando no Portugal dos anos 70 e indo até finais dos anos 80, e nalguns casos até já bem dentro da década de 90. São imagens de bairros de lata pútridos, hospitais sem condições, pessoas a respigar em lixeiras a céu aberto, crianças nuas a tomarem banho em fontanários. Sempre que alguém vem com a conversa do “no meu tempo é que era bom” ou de como a crise está a fazer Portugal retroceder meio século, dava jeito ter um exemplar à mão para esfregar na cara de quem diz tais barbaridades. Não, não estamos a retroceder meio século. Não, não estávamos melhor há 20, 30, 40 ou 50 anos.

A maldita nostalgia que em Portugal encontrou um microclima para se desenvolver esplendorosamente não é uma nostalgia daquilo que o país já foi mas, quase sempre, uma nostalgia daquilo que nós já fomos. E isso provoca desvios inadmissíveis no discurso público: nós não temos realmente saudades do que Portugal era antigamente – temos é muitas saudades dos tempos da nossa juventude. Nesta quadra natalícia, Vasco Pulido Valente assinou dois textos neste jornal, um intitulado “A morte do peru”, onde declarava que “excepto nas lojas, e mesmo nessas melancolicamente, o Natal já não existe”, já que as grandes famílias acabaram e “as criadas desapareceram”; e outro intitulado “Vender Portugal”, onde afirmava que “a velha Lisboa já não existe e a nova Lisboa não passa de uma mediocridade sem ordem ou alegria”, lamentando de caminho “a falência das pequenas tascas da Baixa e do Bairro Alto”.

Eis um exemplo perfeito daquilo a que me refiro. Talvez para uma antiga burguesia endinheirada e com uma existência pastoreada por vasta criadagem hoje em dia o Natal seja mais aborrecido do que há meio século. Mas posso garantir que para a vasta maioria dos portugueses ele é muito mais divertido do que em 1955. Talvez para quem se mantém eternamente fiel à mesma mesa do mesmo restaurante, Lisboa hoje não passe de “uma mediocridade sem ordem ou alegria”. Mas basta sair à rua para ver que se há coisa em que evoluímos drasticamente – e, neste caso, apesar da crise – é na qualidade da vida urbana e da restauração e na forma como uma classe média aprendeu a viver a cidade: as pessoas correm à beira-rio, andam de bicicleta, reúnem-se para beber um copo no final do trabalho.

Com a nossa típica memória de curto prazo, tendemos a esquecer o quanto evoluímos, o quanto melhorou a nossa qualidade de vida, o quão mais ricos hoje somos. A crise é terrível, está a fazer crescer as desigualdades e a mandar-nos uma década para trás. Eu não quero fechar os olhos a isso. Mas nós precisamos de ter a justa memória do nosso passado e uma avaliação sincera do nosso presente se queremos realmente construir um melhor futuro.
 

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