Nómadas modernos, a vida numa mochila

Uma viagem de seis meses que se transformou numa deambulação pelo mundo durante quatro anos. Começar do zero, uma e outra vez, e ficar viciado nisso. Viver muitas vidas numa só. Histórias de quem se fez à estrada.

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No seu cartão-de-visita digital, o sueco Gustav Andersson, 33 anos, escreveu que está a experimentar viver como nómada moderno, sem morada fixa. Aos 77 anos, a escritora americana Rita Golden Gelman continua sem casa e está de partida para Madagáscar. O britânico Dave Ways, 39, deambula pelo mundo há dez anos à procura de um lugar onde viver. Em 1984, Susana Eisenchlas ia passear pela América do Sul por seis meses mas acabou numa viagem que durou quatro anos. Rafaela Mota Lemos, 31, portuguesa, acaba de chegar de Nova Iorque, a segunda cidade do seu périplo de cinco: propôs-se viver três meses em cada. Em 13 anos, o mexicano David Mota De la Parra viveu em oito países.

Há nómadas que se deslocam de um lado para o outro consoante as estações do ano, outros que se mudam em busca da próxima feira onde vender. Fazem-no dentro dos seus próprios países. Escolher o nomadismo como estilo de vida é uma decisão que pode ou não ser premeditada. Por uns meses ou por 30 anos, há quem decida ser nómada, como Gustav, Susana, Rita, Rafaela, David ou Dave, livrar-se da sua casa e atravessar fronteiras.

Levantar uma vida do chão e sentir que se pode viver em qualquer lado a partir do zero, buscar um lugar ao qual se chama casa, perseguir a sensação de liberdade: o que faz mover um nómada moderno?

Gustav tem um blogue onde vai reportando a sua experiência de nómada desde 2011, The Modern Nomad. Um nómada moderno é alguém “geograficamente independente — nada na sua vida o amarra a uma localização específica — e consegue fazê-lo indefinidamente”, diz. “Alguém que anda de mochila às costas por um ano não é um nómada, está apenas a fazer uma pausa na sua vida quotidiana.” No blogue, há fotografias e pequenos textos, reportagens, perguntas e respostas com o que muita gente quer saber e já lhe deve ter perguntado centenas de vezes. Tem várias coisas práticas, como dicas sobre que tipo de mala usar e o que levar nela, até às coisas que se aprendem com a vida nómada. Na secção “foto diária”, Gustav desconstrói: “Há o mito de que a vida de nómada é uma cadeia ininterrupta de aventuras e sítios exóticos. As aventuras e os sítios fantásticos existem, mas há muitos dias mundanos de trabalho, lavandaria e preguiça. Esses dias são raramente referidos porque dão posts chatos.”

Gustav Andersson, sueco com 33 anos, está a experimentar viver como nómada moderno cortesia gustav andersson
No seu blogue The Modern Nomad, vai reportando a sua experiência a viajar pelo mundo cortesia gustav andersson
"Alguém que anda de mochila às costas durante um ano, não é nómada. Está apenas a fazer uma pausa na sua vida quotidiana" cortesia gustav andersson
Gustav tomou a resolução de mudar de vida na noite de Ano Novo de 2011 cortesia gustav andersson
Gustav trabalha como engenheiro de software e pode fazê-lo à distância cortesia gustav andersson
Gustav planeia ir em bfeve para a Califórnia visitar um amigo, um dos lugares a que agora chama de "casa" daniel rocha
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Gustav Andersson, sueco com 33 anos, está a experimentar viver como nómada moderno cortesia gustav andersson

Ao telefone da Suécia, onde está a visitar a família, Gustav conta que a resolução de se tornar nómada foi feita na noite de Ano Novo de 2011. “Depois, passei dois meses e meio a pensar na ideia, a tentar perceber se era algo que queria mesmo e podia fazer. No dia 10 de Março, o meu aniversário, anunciei-o ao meu patrão, amigos, família. Levou uns tempos até me desenvencilhar das minhas coisas, deixar o meu emprego. Parti no dia 1 de Maio de 2011.”

Vivia então há dez anos em Londres, cinco como estudante, outros cinco a trabalhar num banco. Sentia que era altura de mudar. Pensou em ir para Nova Iorque, por exemplo, pensou em outros sítios mas todas as hipóteses iam dar ao mesmo tipo de vida que tinha em Londres. “E se eu não tivesse uma casa fixa?”, imaginou. “Há fortes probabilidades de essa vida ser o antídoto da estagnação. Quanto posso ver, experimentar, fazer se continuar a mudar-me?”

O primeiro destino foi a casa dos pais na Suécia, porque há mais de uma década que não passava tempo com eles. Por lá se deixou estar cerca de dois meses. Rumou aos Estados Unidos, para um festival no deserto, mas o primeiro sítio onde viveria como nómada foi o México, onde ficou uns meses. Depois seguiram-se Argentina, Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Brasil, alguns países europeus — podem ver o mapa no blogue. Vai em breve para a Califórnia, nos Estados Unidos, onde planeou uma road trip de um mês com um amigo. Depois disso, não sabe qual é o destino. Pode ir parar ao Japão, Tailândia ou outro país.

Gustav trabalha como engenheiro de software e pode fazê-lo à distância. “Só tenho uma vida e quero aproveitá-la ao máximo. Tenho imenso medo de estagnar num hábito que se perpetue, acordar de repente, terem passado 20 anos e não ter feito muita coisa durante esse período”, explica.

Agora anda com uma mala e uma mochila. Traz sempre consigo um computador, uma máquina fotográfica, roupa. E duas coisas “não essenciais”: jogos de mesa em pequeno formato (é um luxo completo, diz) e o seu fato de pele, que ocupa espaço. É raro comprar coisas novas porque se o fizer tem de deixar algo para trás. “As pessoas decoram as suas casas e isso torna-se como que um reflexo delas. Enquanto nómada, não tenho um lugar onde me possa projectar.”

É uma opção que pressupõe vários sacrifícios. Por exemplo, o número de profissões que se pode ter é limitado e o que se pode colocar dentro de uma mala também; há relações e amizades que ficam para trás e há hobbies que se têm de abandonar. O que é difícil, considera Gustav, são duas coisas: ter um bom emprego (porque é muito difícil encontrar quem queira empregar um nómada) e gerir a mente (que “às vezes trabalha contra nós”).

Explica a segunda: quando se chega a uma cidade nova e não se conhece ninguém, está-se sozinho durante algum tempo até se fazer novos amigos; quando finalmente se constroem amizades, é altura de partir. E começa-se outra vez do zero. “Ou seja, muitas vezes ficamos à mercê da nossa própria mente e tive algumas dificuldades no princípio quando me sentia sozinho, stressado, preocupado. Agora não é tão difícil.” Escreveu sobre isso no blogue.

Costumam perguntar-lhe muitas vezes se se tornou nómada porque algo aconteceu na sua vida. Como se quem pergunta quisesse, no fundo, ouvir que foi uma força externa que levou Gustav a abandonar a sua vida antiga e não uma opção tomada a partir de vontade própria e reflexão. Porque assim quem pergunta vê a opção como algo pessoal, algo que lhe aconteceu a ele, interpreta. Porque assim “a razão por que as pessoas não estão a fazer o que eu faço ou a seguir os seus sonhos é porque esse acontecimento externo não lhes aconteceu a elas, só a mim”. 

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Ser nómada implica um determinado tipo de personalidade. Obviamente, a estabilidade não deve ser uma preocupação. Mas se se aprecia o imprevisível então ser nómada é a opção de vida certa, diz Gustav.

Os que o fazem por opção são pessoas que obviamente se mudam de um lugar para outro frequentemente, mas “não criam laços fortes com um bairro específico ou com a área onde ficam”, define-nos Markus Jokela, psicólogo da Universidade de Helsínquia, ao telefone. Markus publicou recentemente um estudo com dados americanos onde mostra que as pessoas mais inteligentes são as que têm maior tendência à mobilidade do campo para as cidades (das cidades para os subúrbios, onde se localizam as zonas mais ricas nos Estados Unidos). Ao telefone, explica-nos que na verdade os mais inteligentes procuram educação avançada — e migram para zonas onde há trabalhos virados para o conhecimento, que tendem a estar localizados em cidades.

Em termos de personalidade, um nómada tem grande abertura à experiência, vontade de conhecer novas coisas, novos estilos de vida e culturas; é extrovertido, “o que provavelmente torna mais fácil fazer novos amigos e realojar-se” e tem um nível de agradabilidade baixa porque “as pessoas com doses mais altas de agradabilidade tendem a ser mais empáticas e a preocupar-se mais com os outros, são altruístas e mudam-se menos”. São, no fundo, as mesmas pessoas que num restaurante não pedem sempre o mesmo prato e pensam: “‘Já comi isto, agora quero um prato completamente novo’”, descreve. “Acredito que são as mesmas pessoas que querem mudar-se voluntariamente, que se aborrecem facilmente com o que é familiar e por isso querem variedade e mudança.”

Por outro lado, Shige Oishi, professor de Psicologia na Universidade de Virgínia e autor de vários estudos sobre mobilidade, diz-nos por email que há estudos que sugerem existir uma predisposição genética para a migração — o que pode explicar porque uns têm mais tendência para a mobilidade do que outros. Porém, as suas pesquisas mostram que as repetidas mudanças de casa na infância podem ter um impacto negativo e causar problemas comportamentais aos introvertidos, sendo que estão associadas a níveis mais baixos de bem-estar (menos felicidade e satisfação com a vida) — nos extrovertidos, as mudanças não provocam efeitos, “presumivelmente porque as pessoas podem fazer amigos em sítios novos de forma muito fácil”, explica o psicólogo. Para um nómada, a definição de casa pode ser variada.

Gustav, por exemplo, redefiniu o seu significado ao longo do tempo. Para ele, casa é hoje o lugar onde pode ir quando quiser, onde é bem-vindo, onde sabe localizar as coisas e como funcionam. Curiosamente, conta, a condição de nómada até o aproximou de amigos e da família que pode visitar com mais frequência e por períodos mais longos. Por isso, há três sítios onde tem casa: na Suécia, onde está a família, em Londres, onde viveu dez anos e tem muitos amigos, e na Califórnia, Long Beach, onde pode ficar sempre que quiser.

Com os amigos, passou diversas fases — que incluíram tristeza por não lhe ligarem. Até perceber: “Dizemos que vamos manter-nos em contacto, mas a distância física não o permite. A questão é que as amizades não morrem, apenas hibernam. Quando volto a Londres, Suécia, Califórnia, as amizades acordam e é como se nunca tivesse saído de lá. Não perdemos muitos amigos, o que perdemos é a comunicação que depois se reactiva — e fazemos novos amigos.” Quanto às relações amorosas, explica-as assim: “A maior parte das vezes o que acontece é que se chega a um lugar, envolvemo-nos com alguém e vamos embora. É muito difícil manter uma relação monogâmica ‘normal’ em que uma pessoa é nómada e a outra não. Mas se for como eu, poliamoroso, alguém que pode estar romanticamente envolvido e ter sentimentos fortes com mais do que uma pessoa ao mesmo tempo, nada impede de se apaixonar por alguém, ir embora, voltar, ir embora…”  

Susana e CArlos estavam em Israel nos anos 1980 qaundo decidiram viajar seis meses para a América Latina cortesia susana eisenchals e carlos alperin
Susana é linguista, Carlos é produtor de cinema e vivem agora na Austrália cortesia susana eisenchals e carlos alperin
No Egipto há 30 anos cortesia susana eisenchals e carlos alperin
"Tínhamos muito pouco e tudo o que tínhamos estava nas nossas mochilas", diz Suana ao telefone de Brisbane cortesia susana eisenchals e carlos alperin
Quando partiram para a América Latina, a ideia era ficar seis meses. Ficaram quatro anos daniel rocha
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Susana e CArlos estavam em Israel nos anos 1980 qaundo decidiram viajar seis meses para a América Latina cortesia susana eisenchals e carlos alperin

Ser nómada moderno em par é possível. Susana Eisenchlas e Carlos Alperin, argentinos, estavam a viver em Israel nos anos 1980 quando decidiram fazer uma viagem pela América Latina. A ideia era estarem seis meses a passear. Ficaram quatro anos. Uma hipótese levou a um país que levou a outro e depois a outro e a outro. Em Buenos Aires, Susana encontrou um amigo que trabalhava na embaixada indiana e lhe disse que havia um programa de troca de estudantes na Índia. Chegando à Índia, ela percebeu que o seu diploma em Religião Comparada de Israel não era reconhecido. Acabaram por viajar pelo país durante seis meses, atravessaram o Nepal e continuaram a viajar até ficarem sem dinheiro. Iam em direcção ao Alasca trabalhar na indústria do peixe quando decidiram parar em Tóquio por uma semana. Nunca chegaram ao Alasca porque acabaram por ficar a viver no Japão por dois anos, tinha ela 29 anos e Carlos 36.

Fizeram vários pequenos trabalhos, entre eles, vender pinturas na rua, o que rendeu dinheiro para comprar parte da casa na Austrália, onde vivem. Entretanto, Susana ficou grávida, teve a filha, arranjou trabalho na Austrália. Ao telefone de Brisbane, Susana diz que era impossível ter este estilo de vida como casal se os dois não estivessem mesmo convencidos de que era algo que valia a pena. Lembra: “Tínhamos muito pouco e tudo o que precisávamos estava nas nossas mochilas. Sentia que podia viver em qualquer lado. Era muito barato viajar na altura, gastava cinco dólares por dia na Índia. Tínhamos imensa liberdade, esta ideia de completa liberdade, de ir para um sítio e ficar o tempo que se quer, sem planos e sem bilhete de regresso. Quando se viaja por tanto tempo, começa-se a esquecer que somos turistas. Lembro que no Japão de repente olhava para os turistas e pensava que eram estrangeiros, até perceber que afinal eu é que me parecia com eles!”

No Verão, voltaram a fazer uma viagem de quatro meses, em parte porque a linguista Susana ia fazer pesquisa em Israel, mas passaram pela Turquia e por Itália. “O que a experiência de nómada ensina é a não ter medo de começar do princípio num novo sítio. Dá imensa confiança, de que se consegue lidar com qualquer cultura e qualquer situação — talvez seja uma falsa confiança, mas é!”

Susana é professora na Universidade de Griffith, Brisbane, Carlos é produtor de cinema. “Apesar de estar aqui há anos, não sei se este é o sítio onde quero ficar. Não me importava de voltar a vaguear de novo”, confessa.

Rita Golden Gelman tem hoje 77 anos e partiu há 30 para a América Latina cortesia rita golden
Rita é autora de livros para crianças e já viajou por Bali, Nova Guiné, Laos, Quénia, Tanzânia... cortesia rita golden
Rita estudou Antropologia e costuma usar uma organização de viajantes, a Servas, que acolhe pessoas de todo o mundo cortesia rita golden
A próxima paragem será Madagáscar daniel rocha
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Rita Golden Gelman tem hoje 77 anos e partiu há 30 para a América Latina cortesia rita golden

Foi também há quase 30 anos que Rita Golden Gelman, hoje com 77, vendeu a casa e tudo o que tinha e partiu para a América Latina. Começou num avião, quando se sentou ao lado de uma mulher que viajava por todo o mundo em trabalho e decidiu que iria comprar uma viagem de duas semanas para as ilhas Galápagos. No fim dessas férias, disse: “A minha vida não está completa, estou a perder o mundo”, conta ao telefone de casa da filha em Seattle, onde está uns tempos.

Foi estudar Antropologia. Fez uma viagem ao México. Quando regressou, o marido quis o divórcio. “E eu pude finalmente viver o meu sonho.” Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Honduras… Autora de livros para crianças, Rita continuou sempre a viajar até hoje — viveu em Bali, Nova Zelândia, Nova Guiné, Laos, Tailândia, Tanzânia, Quénia, Turquia.

Nunca teve problemas como mulher — “bom, comecei a viajar com 48 anos; se tivesse 25, talvez fosse diferente…”. A autora de Tales of a Female Nomad ou Li’ving at Large in the World costuma usar uma organização de viajantes, a Servas, que acolhe pessoas de todo o mundo. “Viajar e interagir com outros muda a forma como vemos o mundo: nunca mais se olhará para alguém diferente de nós como alguém de quem se deva fugir, mas sim a quem queremos fazer perguntas e essa é a magia da vida. Correr riscos, a confiança e a serendipidade são ingredientes-chave da felicidade. Sem riscos nada acontece, sem confiança o medo toma conta de nós e sem serendipidade não há surpresas.”

Oficialmente, a morada de Rita é a casa da filha. Porém, tem vivido nos últimos tempos numa comunidade, mas diz que ainda não está preparada para assentar. Vai aceitar o convite de uns amigos para ir a Madagáscar em breve. “O mundo é a minha casa. A minha comunidade está nas nuvens digitais”, diz. 

A americana Julia Chaplin pensou misturar a palavra gypsie com jet-set e criou o conceito gypset para reflectir um fenómeno dos últimos 10/15 anos. Com a Internet e a força de trabalho reelance, enorme — fotógrafos, designers, artistas —, é muito fácil viajar e trabalhar para si próprio e de qualquer lugar, justifica por telefone a partir do México, depois de ter ido surfar. “E na verdade estas indústrias criativas recompensam quem viaja e tem experiências mais exóticas — recompensam financeiramente, criativamente, artisticamente. Ser nómada é algo valorizado”, diz.

Julia Chaplin já escreveu livros sobre o assunto, tem um site. Não tem números, mas diz que este é um grupo que cresce. Quem é gypset? “Quem está a trabalhar e a procurar soluções, quer isso signifique viver numa casa na árvore ou viajar a maior parte do tempo — estão basicamente a procurar uma solução para o ambiente, para a filantropia, para a arquitectura etc.”

Julia Chaplin criou o conceito de "gypset", que mistura nomadismo com luxo cortesia julia chaplin
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Julia tem casa em Nova Iorque mas estava no México quando a Revista 2 falou com ela daniel rocha
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Julia Chaplin criou o conceito de "gypset", que mistura nomadismo com luxo cortesia julia chaplin

Os gypset são seminómadas e Julia Chaplin também se define como tal. Tem casa em Nova Iorque, mas viaja a maior parte do ano. É colaboradora do New York Times e Elle e designer freelance. “Uma pessoa que é gypset está sempre à procura de alternativas e do luxo alternativo — luxo é uma mistura de criatividade, de estilo e de alma e pode-se criar algo luxuoso com pouco dinheiro.” Olha para os anos 1980 e analisa: “A sociedade chegou a um momento em que recompensa um indivíduo por ter experiências novas, enquanto nos anos 1980 se era recompensado por viver num apartamento e trabalhar num escritório.”

Com entre 250 a 500 visitas diárias, o site de Tiffany Owens responde a quem procura circular em trabalho. O Modern Day Nomads é um motor de busca de emprego para nómadas. Tiffany, 47 anos, ficou surpreendida com o facto de o nomadismo “se ter tornado um novo estilo de vida” (há um equivalente europeu, o Working Traveller).


Desde 2006 que publica anúncios de empresas com postos de trabalho que vão desde quem queira tomar conta de propriedades a ensino de Inglês na Nicarágua. Está sobretudo orientado para o nomadismo nos Estados Unidos, mas tem também oportunidades fora. Tiffany, que escreve também para jornais, e é filha de um agente do FBI por isso cresceu a ser nómada, junta as fontes que costuma usar para procurar emprego e partilha-as com outros no site. A regra é o pagamento ser de pelo menos 10 dólares por hora. Tem serviços pagos. Os utilizadores do site são muito variados e as faixas etárias também — a maior é a que tem entre 21 e 45 anos.

Actualmente a viver em Portland, onde o marido é capitão de um barco, descreve os dois como “nómadas de lenta mobilidade porque aceitamos empregos em determinados sítios e ficamos um ano, dois, três”. “Não temos intenção de parar, adoramos este estilo de vida que tem funcionado muito bem. Ser nómada tem-nos dado a oportunidade de viver em vários sítios no país, é muito mais do que viajar por um período curto. Sinto que fico a conhecer os lugares, faço amigos em todo o lado e aprendo a fazer novas coisas. Quando andamos de um lado para o outro é sempre um novo capítulo que se abre e isso é muito excitante. Estamos sempre a reinventar-nos e isso dá a sensação de frescura.”

Cortesia DAvid Mota de la Parra
Cortesia DAvid Mota de la Parra
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David já viveu uns meses em Marrocos. É psicólogo e vai afzendo pequenos trabalhos nos sítios por onde passa Daniel Rocha
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Cortesia DAvid Mota de la Parra

David Mota De la Parra, 33 anos, regressou ao México há seis meses — e por enquanto não quer ir muito longe, pois o avô está doente. Poderia, porém, ser um dos utilizadores do site de Tiffany. Também ele se considera um nómada temporário porque fica cerca de um ano nos lugares que escolhe para viver. “Na minha cabeça, há três critérios para sentir que vivo num sítio: ter um trabalho ou um projecto, uma razão além de ser mero turista; encontrar um sítio que chamo meu para viver; e assistir à mudança das estações nesse lugar.”

A vida de nómada começou quando foi estudar para os Estados Unidos, em Austin — seguiu-se Paris, onde trabalhou dois anos. A partir daí decidiu que era isso que queria fazer: trabalhou num barco durante dois anos, na Bélgica por mais de um ano, na Turquia outro ano e na Argentina outro. Esteve em Marrocos, Alemanha, Guatemala, Nova Zelândia... Ainda não decidiu para onde vai a seguir. “Os sítios e as pessoas são temporários, por isso o sítio a que chamava ‘casa’ estava mais na minha cabeça. A minha casa está mais dentro de mim.”

Estudou Psicologia e Antropologia e trabalhou com indígenas, agricultores, com grupos LGBT em países islâmicos, fez vários trabalhos avulso pelo mundo. Move-o a ideia de “viver muitas vidas numa única”. “Sou uma pessoa calorosa e facilmente amo muitas coisas. Encaixa muito bem com a minha personalidade aterrar num lugar e abrir o coração a todas as experiências que ele tem para oferecer. Neste modo de nómada, as pessoas permitem-nos ser diferentes, porque somos os estrangeiros. Em três dias, podemos fazer uma amizade que dura para a vida porque abrimos o coração, estamos presentes no momento, ligamo-nos verdadeiramente e isso acrescenta intensidade. Como não vamos ficar, não ameaçamos as suas vidas.”

Deixar um lugar é ficar com “o coração despedaçado”, mas a tristeza é importante para David conseguir fechar o ciclo. O processo torna-se viciante: quando está num lugar que conhece demasiado bem, facilmente se aborrece e deixa de apreciar as pequenas coisas. “Quando estava na Turquia, ficava maravilhado quando bebia chá naqueles pequenos copos cheios de açúcar — algo que as pessoas que vivem lá a vida toda não sentem. Sou viciado nessa sensação de que tudo é maravilhoso, de conhecer pessoas novas, deixar-me explodir naquilo que sou”, conta com voz entusiasmada, como se se estivesse a lembrar de situações concretas. “Se vivesse lá todo o tempo, não sei se iria apreciar tanto aqueles amigos — é a sensação de que se vai perder algo que o torna tão especial.”

Esteve ligada ao espaço co-work na Lx Factory, em Lisboa, e é lá que Rafaela Mota Lemos, 31 anos, combina a entrevista. Confessa que anda cheia de vontade de voltar a Lisboa: “Este sol!!”, explica a rir. Veio há dias de Nova Iorque, está quase a ir para Portimão, onde nasceu, visitar a família. Ainda a tentar “processar” a experiência nos Estados Unidos, onde muita coisa aconteceu e não necessariamente toda ela excitante, Rafaela Lemos fala ponderadamente do seu projecto Home is Where I am.

Rafaela Mota Lemos acabou de chegar de Nova Iorque e tem o projecto de viver três meses em cinco cidades joão silva
Rio de Janeiro foi a primeira cidade estrangeira que conheceu, com 21 anos daniel rocha
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Rafaela Mota Lemos acabou de chegar de Nova Iorque e tem o projecto de viver três meses em cinco cidades joão silva

Um dia concluiu que as despesas fixas que tinha por mês, mais ou menos mil euros, davam para viver noutras cidades que não Lisboa. “Tendo um cartão de multibanco e homebanking, consigo fazer o meu trabalho em qualquer parte.” Tradutora técnica freelance, com contratos com várias empresas, propôs-se viver três meses em cinco cidades: Rio de Janeiro, Nova Iorque, Telavive, Nápoles e Lobito. Rio porque foi a primeira cidade estrangeira que conheceu aos 21 anos; Nova Iorque “porque é a antítese da minha cidade natal”; Telavive, porque tinha um grande fascínio por Israel e a cidade é neste momento “a que tem mais start-ups”, “acaba por ser um terreno muito fértil que promove inspiração”; Nápoles porque é uma das cidades de que mais gosta, “muito genuína”; e Lobito porque o pai é angolano e tem lá família.

“Eram três meses porque era o período que os vistos duravam e o mínimo de tempo em que nos começamos a sentir confortáveis numa cidade. Em três meses, não se fazem amigos mas já se conhecem as dinâmicas de um espaço. No Rio, fiquei seis meses e realmente é muito mais difícil sair em termos de gestão emocional porque se criam laços. Por outro lado, em Nova Iorque, custou-me sair ao fim de três na perspectiva de: ‘Bolas, se tivesse ficado mais três meses, o que me podia ter acontecido?”

No blogue Odisseando, onde vai reportando as suas experiências, há um post sobre empacotar quatro anos de vida em Lisboa, parte 1, dando a entender que voltará. Tem um T1 espalhado pelas casas de cinco amigos. “Vivo com um computador e uma mala de 20 quilos”, conta-nos, a rir. A vida de nómada tem-lhe ensinado que não precisa de muita tralha e se adapta a qualquer coisa. Não precisa de muita coisa para se sentir em casa, mas quatro são essenciais: uma rotina de trabalho, um hobby que ajude a conhecer pessoas fora do contexto de trabalho, uma vida social e um sítio confortável onde morar.   

Sendo de Portimão e tendo vivido antes em Leiria, Lisboa, Milão e Rio de Janeiro, Rafaela já tinha tido a experiência de começar do zero várias vezes. “Torna-se viciante. Porque é giro, desafia-nos. Busco sempre aquele momento mágico em que passamos de turista a local e isso acontece mais ou menos passadas três semanas, um mês. É quando começo a reconhecer o rosto, as rotinas de quem apanha o metro e o autocarro.”

Rafaela chegou ao Brasil em Fevereiro e acabou por ficar seis meses. Pensou em ficar também mais três meses em Nova Iorque, mas o problema com um dente empurrou-a para Portugal. Talvez vá para Nápoles apenas em Maio em vez de se mudar para Telavive como tinha pensado, porque quer despachar trabalho primeiro para depois conseguir aproveitar mais a cidade. Ainda não tem a certeza de que vai mesmo viver três meses para Lobito, pois as conexões na Internet não são as melhores e isso é essencial para o seu trabalho. A vida dá as suas voltas para baralhar os planos fixos de um nómada — quem sabe que voltas dará ainda este projecto de Rafaela. “Acima de tudo, isto é um exercício de liberdade. Esta liberdade geográfica puxa muita coisa.”  

Castelo de Almourol, em Portugal (2013) cortesia dave ways
Mardi Himal, Nepal (2014) cortesia dave ways
Em 2008 cortesia dave ways
Nepal cortesia dave ways
Filipinas (2009) cortesia dave ways
No Saara (2005) cortesia dave ways
Mindanao (2008) cortesia dave ways
Se Dave tivesse de escolher um sítio para viver seria o Nepal. Mas não lhe pode chamar "casa" por causa da burocracia. Vai continuar a procurar daniel rocha
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Castelo de Almourol, em Portugal (2013) cortesia dave ways

Inglês, 39 anos, amante de Lisboa e de Sintra, Dave Ways diz que Portugal é o seu país europeu favorito. Quando há dez anos começou a procurar um sítio a que chamar “casa”, Dave tinha um plano: ir de Portugal à China por terra durante um ano. A ideia era parar em cada país com tempo e perceber se queria viver em algum. Também a vida de Dave deu voltas para lhe baralhar o projectado.

Ao telefone das Filipinas, onde foi operado a um apêndice e está a curar-se de uma hérnia, Dave explica que também esta estadia não estava planeada — “mas é o que acontece a quem vive na estrada”. Voltando a 2005, dá exemplo de planos que não aconteceram: nunca chegou a ir à Ucrânia porque o autocarro não apareceu. Quando começou a viajar, percebeu que tinha um desafio linguístico pela frente, altura em que a travessia “se transformou de um sonho para uma coisa real e prática”. “Não é assim tão fácil ir para um país de que se gosta, é preciso saber falar uma língua, gostar da cultura, ter uma rede social e capacidades para viver. Embora tivesse este tipo de informação a partir das minhas pesquisas, tudo era diferente no terreno”, explica.

Das várias voltas que deu, acabou por ir parar à Nigéria ensinar informática, algo que já fazia em New Castle, onde vivia. Andou pelo Tibete, Malásia, Singapura, China, Malásia, Espanha, Alemanha, França, Roménia, etc. Desenvolveu uma relação forte com o Nepal, o mais próximo a que pode chamar “casa” — mas não chama.

No seu website, The Longest Way Home, vende guias digitais e tem motores de busca de venda de viagens de avião e quartos de hotel. É assim que faz dinheiro, apostando em várias frentes. Mas já tirou fotografias para as Filipinas, exportou roupas, ensinou… “Nesta parte do mundo, sobrevive-se com pouco. A minha regra é: se gostar de um sítio, fico.”

No Nepal, criou um círculo social e de trabalho, adora, mas não se muda por causa da burocracia: um estrangeiro só se pode tornar residente se se casar com um nativo, e mesmo assim não tem direito a votar, nem a comprar terra. “Não vale a pena encontrar uma casa e ser-nos dito que não podemos ficar lá. O que passei é o que os imigrantes passam na Europa. Quando falamos com nómadas, eles andam de um lado para o outro, mas todos acabam por ter um lugar ao qual voltam, normalmente onde está a família. No meu caso, é completamente diferente, estou a procurar um novo país para viver. Fui aquilo a que se chama ‘uma criança de orfanato’, não tive a melhor infância e essa era uma das razões por que queria encontrar um sítio melhor.”

Dave vai escrevendo sobre as suas experiências no blogue e um dos posts mais populares foi sobre os vários estágios do “viajante de longo prazo”: o “muro” dos quatro/cinco anos é o mais difícil de ultrapassar, depois tudo se torna mais fácil. “É como aquelas pessoas que trabalham das 9h às 17h — de repente, estava a trabalhar e a fazer o mesmo que quem trabalha todos os dias. Uma amiga minha dizia que não sabia o que me contar porque a sua vida era casa-trabalho. Muita gente sente que não tem nada de especial para me dizer e é o oposto — adoro ouvir as pessoas contar que estão a fazer as coisas mais simples! Depois, eram as pequenas coisas como estar sempre a usar o mesmo tipo de roupa, a roupa de viajante. Foi quando um dia parei e pensei: o que é que realmente me apetece? Bolachas num restaurante cool, com uns jeans e uns sapatos confortáveis sem serem as botas de caminhar. Foi nessa altura que comecei a levar coisas na minha mochila que normalmente as pessoas não levavam porque são pesadas, como jeans, para ter de volta o meu mundo normal.”

Quanto ao desejo de ter uma casa, não desapareceu. Continua lá, a 100%, desde o primeiro dia. Tem falta das suas estantes de livros. Gostava de pendurar as fotografias na parede em vez de as ter no desktop. “Mas passei a minha vida a tentar procurar um sítio onde viver e o meu instinto, o meu móbil é nunca desistir. Sou muito teimoso. Não posso parar.” Para um nómada como Dave, “esta jornada é muito sobre não haver caminho de regresso”.

Artigo corrigido: o nome de Julia Child foi corrigido para Julia Chaplin 

 

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