No tempo do beija-ditador

eodoro e Teodorin estavam satisfeitíssimos. Ainda mal se atreviam a balbuciar “ôba” e já os imortalizavam em glória na Sapucaí. Não sabem? Pois conta-se depressa. Estavam os Teodoros, pai e filho, a jogar monopólio na mansão presidencial, quando Teodorin, distraído a folhear uma revista brasileira, gritou para o pai: “Regardez, padre, el bueno Mardi Gras brasileño!” Teodoro, resoluto, respondeu-lhe num castelhano babélico: “Compra!” Mas Teodorin explicou-lhe, com paciência, que não podia ser assim. Não era só comprar, era preciso conversa, diplomacia, essas coisas democráticas. Teodoro disse-lhe que de democracia não percebia nada mas, ainda assim, que comprasse. Foi o que bastou para que Teodorin, sagaz, se empenhasse na coisa. Era preciso um passo, mas qual? Foi ver a lista das escolas de samba e tropeçou numa com nome de pássaro: Beija-Flor. Servia perfeitamente. Fez contactos. E tratou do cheque, naturalmente. Se o Brasil andava a cortar nos apoios às escolas sambistas, por que razão não poderia a mais recente sócia da grande irmandade lusófona (que é uma coleccionadora compulsiva de línguas oficiais e não oficiais — a brincar, entre umas e outras, já juntou ao espanhol da colonização e ao fang tribal o inglês “pidgin”, o francês e o português) dar uma ajuda?

Podia e daria. E se cada escola gasta, em média, por ano, 1,5 milhões de euros, ele seria magnânimo: dobraria a oferta. E a escola-pássaro lá recebeu, a título de patrocínio, a módica quantia de 10 milhões de reais, ou seja, 3,5 milhões de euros. Claro que, com tal maquia, outro pássaro cantaria. E cantou. A escola de samba Beija-Flor concorreu ao desfile na Sapucaí com “Um griô conta a história: um olhar sobre a África e o despontar da Guiné Equatorial”. Um mimo. Numa história onde há um rei cobiçoso (D. João II de Portugal) e sangue negro como “argamassa do edifício da escravidão”, como se relata no texto justificativo do enredo deste ano, o final feliz desagua no presente como água morna em banheira vazia. Ora ouça-se, lendo, o samba-enredo: “Um africano rei que não perdeu a fé/ Era meu irmão, filho da Guiné! (…) Na ginga do balelé, cores no ar/ Dessa mistura vem meu axé…/ Canta Brasil! dança Guiné!/ Criança! Levanta a cabeça e vá embora! No mar que trouxe a dor,/ Riqueza aflora/ Tens uma família agora!/ Quem beija essa flor não chora.” Exacto. E quem beija ditador não perde. A escola foi a vencedora do Carnaval e, no final do desfile, lá estava o embaixador do país de Teodoro Obiang, Pedro Matute Tang, a abraçar Neguinho, o intérprete histórico da escola, e a garantir: “Nós fazemos cultura, não fazemos política.” Num camarote, Teodorin (Teodoro não foi, estava entretido com outros carnavais) deve ter adorado. Como é bom ter amigos! Como é bom ser louvado desinteressadamente, mesmo que a troco de algum dinheiro, por gente tão amável… Gente que até é capaz de escrever, como objectivo comum ao Brasil e à Guiné Equatorial, “caminhemos sobre a trilha de nossa imensa felicidade”! Até porque, e disso ninguém duvida, são mesmo felizes os cidadãos que sabem que a Guiné Equatorial é um país riquíssimo. São poucos, é verdade, apenas umas centenas dos seus quase 800 mil habitantes, os outros vivem na miséria — mas têm o horizonte, a esperança, agora até têm um samba, olerê olará, et cetera e tal, Teodorin é um génio.

Agora que Portugal vai conceder “vistos gold” a quem se disponha a investir na cultura, é bom não perder de vista esta (como se diz?) “janela de oportunidade”. Sai uma ópera para Teodoro! Uma sinfonia para Teodorin! Um bailado para a felicidade equatorial! E choverão os investimentos, os vistos, e a alegria universal paga a preço de “amigo”. Vendo bem, agora que a Guiné Equatorial adoptou o português como língua oficial, é a melhor maneira de nos irmanarmos. Até porque as palavras que para aqui interessam são escritas sempre da mesma maneira, antes ou depois de qualquer acordo ortográfico. Ora confirmem: comprar, rebaixar, oprimir, roubar, corromper. Doce vocabulário, “na trilha da nossa imensa felicidade”. Seja em samba ou fadinho, os Teodoros agradecem.

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