Nem só de direito vive o Homem

Será o mesmo brilho a mesma festa.

Esta semana, cá pelo burgo e no mundo do direito, pudemos assistir a mais um picaresco episódio da cruzada anticonstitucional do impagável presidente do Governo Regional da Madeira, pelo que vamos ver o que se passou por outras paragens.

Nos EUA, uma notável decisão do Supremo Tribunal – de alguma forma, um misto do nosso Tribunal Constitucional com o nosso Supremo Tribunal de Justiça – gerou enorme polémica com os sectores liberais da sociedade a criticarem o conservadorismo da maioria dos juízes do Supremo Tribunal e a apontarem uma agenda política de direita ao tribunal, acusando-o de invadir áreas que cabem ao poder legislativo. Nada que soe estranho aos nossos ouvidos, ninguém sugeriu a eliminação do Supremo Tribunal. É a vantagem de os EUA serem um país com muitos séculos de história em que se sabe a importância dos checks and balances para garantir o equilíbrio dos poderes e uma boa governação.

No caso Burweel v. Hobby Lobby discutia-se o direito de uma empresa comercial a não custear, por motivos religiosos, um seguro de saúde obrigatório para os seus empregados na parte em que cobria práticas anticoncepcionais.

A decisão foi tomada por cinco votos contra quatro e sendo jurídica é incontestavelmente política. Para os juízes da maioria, sendo uma empresa comercial uma pessoa em termos jurídicos e sendo a mesma controlada por pessoas com convicções religiosas que proíbem a contracepção, então, por respeito à sua liberdade religiosa, deveria haver uma excepção à obrigação do pagamento do seguro na parte que contraria essas mesmas opções. Para o Supremo Tribunal, nada impede que o Governo estabeleça essa excepção, tal como já o faz em relação às entidades religiosas não comerciais, às quais já é permitido eximirem-se a tais pagamentos por imporem um sacrifício excessivo nas suas convicções religiosas.

O acórdão não é seguramente dos mais brilhantes na sua argumentação, já que os juízes, cientes da caixa de Pandora que estão a abrir – amanhã, por exemplo, poderão empresas detidas por testemunhas de Jeová querer não pagar o seguro de saúde obrigatório dos seus empregados na parte que custeie transfusões de sangue –, perdem imenso tempo a afirmar que esta decisão não constitui um qualquer precedente para outras situações e que só é aplicável no caso dos anticoncepcionais.

O que permite que a corrente liberal norte-americana, protagonizada no acórdão pelos quatros juízes derrotados, sublinhe que esta decisão mais do que uma decisão respeitante à liberdade religiosa é uma decisão sobre direitos das mulheres. Uma decisão que é, assim, apresentada como um derrota para as mulheres, mas que, sobretudo, vai gerar inúmeras recusas de pagamento de seguros por parte de entidades patronais invocando as mais diversas ofensas aos mais diversos credos religiosos. A ver vamos.

Cá pelo nosso continente, é de referir a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) do passado dia 1, no caso A.B. contra Suíça, em que este tribunal condenou a Suíça por violação da liberdade de expressão de A.B.

A.B. é um jornalista suíço que publicou diversas informações constantes de um processo judicial, enquanto o mesmo estava em segredo de justiça. O processo respeitava a Gérard M., um automobilista que decidiu atropelar vários peões antes de se atirar da ponte de Lausanne em 2003. Matou três pessoas e feriu oito e o caso causou enorme emoção pública. O jornalista A.B. tinha tido acesso a diversos interrogatórios no processo porque uma das partes no mesmo tinha perdido as fotocópias que fizera num centro comercial e alguém as levou ao jornal onde trabalhava o jornalista A.B. E a partir das mesmas fez os artigos em causa.

Julgado na Suíça por violação de segredo de justiça, A.B. foi condenado no pagamento de uma multa de cerca de € 2700 pelo que recorreu ao TEDH queixando-se da violação da sua liberdade de expressão, já que as informações que publicara eram do interesse público, em nada tinham prejudicado a investigação e a multa era muito elevada.

O TEDH deu-lhe razão, citando, entre outras decisões no mesmo sentido, dois casos semelhantes em que Portugal foi condenado: Campos Dâmaso contra Portugal de 2005 e Pinto Coelho contra Portugal de 2008. Tudo a bem da liberdade de expressão.

Mas felizmente que nem só de direito vive o homem e que hoje podemos festejar com um poema, o upgrade do Panteão Nacional corporizado pela chegada de Sophia de Mello Breyner Andresen:

 

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta

Continuará o jardim, o céu e o mar,

E como hoje igualmente hão de bailar

As quatro estações à minha porta

 

Outros em Abril passarão no pomar

Em que eu tantas vezes passei,

Haverá longos poentes sobre o mar,

Outros amarão as coisas que eu amei.

 

Será o mesmo brilho a mesma festa,

Será o mesmo jardim à minha porta,

E os cabelos doirados da floresta,

Como se eu não estivesse morta.

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