Negócios do lixo: uma privatização que se transformou numa guerra

Com muitos interesses e armas em jogo, a guerra do lixo está a pôr em causa duas décadas de colaboração entre Governo e municípios neste sector.

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Em causa está a privatização da EGF, que vai levar à privatização das 11 empresas multimunicipais de gestão do lixo Enric Vives-Rubio/ARquivo

A privatização da Empresa Geral de Fomento (EGF), a sub-holding do grupo Águas de Portugal para o sector dos resíduos, está a semear uma guerra entre o Governo e os municípios. Para entendê-la, é preciso recuar ao princípio dos anos 1990. Nem todos estão no conflito com as mesmas armas, nem com os mesmos propósitos. O PÚBLICO passa em revista os principais contornos da polémica.

Duas décadas de paz
Há precisamente 20 anos, quando o lixo era sobretudo um problema e não tanto um negócio, os municípios de Lisboa, Loures, Amadora e Vila Franca de Xira sentaram-se à mesa com o Governo para dar o primeiro passo de uma nova era no sector. As autarquias tinham um plano concreto para lidar juntas com os seus resíduos sólidos urbanos. A administração central tinha o dinheiro.

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Assim nasceu, em 1994, a Valorsul, a sociedade que viria a transformar-se, duas décadas depois, na jóia da coroa e no ponto nevrálgico do polémico processo de privatização da EGF.

A possibilidade de juntar Governo e autarquias na área dos resíduos – e também do abastecimento e do saneamento – já estava prevista desde 1993. Dois diplomas legais tinham aberto caminho à criação dos “sistemas multimunicipais”, que servissem pelo menos dois municípios e exigissem investimento do Estado, por razões de interesse nacional. O Estado entrava com a maioria do capital, através da EGF, e assegurava os investimentos para construir aterros e outras infra-estruturas. Os municípios também entravam como sócios e eram ao mesmo tempo os clientes das empresas criadas.

Não foi fácil, porém, convencer as autarquias a ceder a sua tutela sobre os resíduos a uma empresa em que eram minoritárias. Muitos municípios uniram-se em associações e seguiram o seu caminho, sem dar a mão à EGF. E nem todos os noivados deram em casamento. Na região de Lisboa, Sintra, Cascais e Oeiras desistiram de uma solução a sete, e Lisboa, Loures, Amadora e Vila Franca de Xira avançaram sozinhos para a Valorsul. “Não foi uma negociação fácil, mas foi bem conseguida”, recorda Rui Godinho, ex-vereador na Câmara Municipal de Lisboa.

Duas condições fizeram com que quase duas centenas de concelhos aderissem aos sistemas multimunicipais: a primeira foi a garantia legal de que as sociedades concessionárias seriam sempre públicas; a segunda foi uma série de contrapartidas negociadas com as autarquias, como obras, equipamentos e serviços de interesse para os municípios.

A dificuldade com que tais acordos foram conseguidos explica em grande medida a reacção agora das autarquias, que vêem a privatização da EGF como um acto de traição do Governo. “Claramente, é uma posição de fractura”, afirma Jorge Botelho, presidente da Câmara Municipal de Tavira e da AMAL – Comunidade Intermunicipal do Algarve.

A presença de privados nos resíduos não é novidade. Nos sistemas municipais já há concessões. E na esfera dos sistemas multimunicipais há o caso da Braval, criada em 1996 para servir Braga, Vieira do Minho, Vila Verde, Póvoa de Lanhoso e Amares. Em 2000, os próprios municípios compraram os 51% da EGF. E em 2005, a Câmara de Braga privatizou parcialmente a Agere, a empresa municipal que detém 79% da Braval. Na prática, três grupos ligados à construção civil – ABB, DST e R&N – agora possuem indirectamente 39% da Braval.

A EGF permaneceu maioritária em 11 concessionárias de sistemas multimunicipais, controlando a gestão da maior parte dos resíduos urbanos no país (ver infografia). O sistema funcionou em relativa paz durante duas décadas. E o lixo, que era um problema, passou a dar lucro.

Um estranho negócio
Até que ponto os lucros do lixo são suficientes para atrair compradores à EGF é uma das grandes dúvidas da privatização. Durante os 20 anos que ainda durarão as concessões da EGF, os lucros da empresa em si – pouco mais de cinco milhões de euros em 2012 – não justificariam a compra senão por um preço muito abaixo dos 150 a 200 milhões de euros de que já se chegou a falar. Ir buscar mais dividendos às concessionárias – que juntos geraram 15 milhões de resultado líquido em 2012 – seria, por outro lado, um ponto de conflito adicional com os municípios.

Alguns acreditam que o Governo está a tentar engordar o “dote” da noiva, através de outros mecanismos. Um deles é o aumento do “valor de contrapartida” que as empresas de tratamento de lixo recebem pelos materiais recicláveis. É um montante substancial – cerca de 20% das receitas das empresas do grupo EGF – que é pago pela Sociedade Ponto Verde (SPV), a entidade que gere a reciclagem de embalagens em nome da indústria. O Governo quer subir já em 7% este valor. “É algo que só se pode perceber numa lógica de aumentar as receitas dos sistemas”, disse ao PÚBLICO, no princípio deste mês, José Brito Ribeiro, da empresa Sovena, que faz parte da Embopar, a sociedade que representa os fabricantes e importadores de produtos embalados.

O mesmo se tem dito do novo regulamento tarifário aprovado pela ERSAR – a entidade reguladora do sector – que fixa como se deve calcular a tarifa que as empresas da EGF cobrarão aos municípios a partir de 2016. Em causa está sobretudo o cálculo da remuneração a que as empresas concessionárias têm direito, uma espécie de renda pelas infra-estruturas que coloca à disposição do serviço público. “Este regulamento tarifário é para criar circunstâncias favoráveis ao dono privado da EGF. É uma parte do puzzle”, diz o presidente da Câmara Municipal de Loures, Bernardino Soares.

O presidente da ERSAR, Jaime Melo Baptista, acredita que as fórmulas são equilibradas, a julgar pelas opiniões expressas no conselho consultivo da entidade, quando o assunto foi discutido. “Os operadores achavam que [a remuneração] devia ser mais alta, os consumidores, que devia ser mais baixa”, diz Melo Baptista.

O novo regulamento tarifário vai trazer mais controlo sobre o cálculo das tarifas. Só podem ser contabilizados os proveitos que tenham a ver com o tratamento dos resíduos. Haverá metas de eficiência a serem cumpridas por cada sistema. E a própria remuneração dos activos estará condicionada à taxa de uso efectivo das infra-estruturas.

Jorge Moreira da Silva, ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, tem argumentado que é o regulamento tarifário que trará alterações ao sector, e não a privatização. Na quarta-feira passada, Moreira da Silva apresentou pela primeira vez números a indicar que, nos 11 sistemas controlados pela EGF, a tarifa média pode cair 7% com as novas normas. 

Mas hoje há uma grande diversidade de tarifas nas empresas da EGF, dos cerca de 20 euros por tonelada na Valorsul aos 47 euros da Resiestrela. Algumas podem subir, entre elas a da Valorsul, com implicações sobre 1,6 milhões de habitantes. É a única empresa da EGF que tem uma incineradora, que é uma máquina de fazer dinheiro, responsável por 40% das receitas da empresa, com a venda de electricidade. Tal como os parques eólicos e painéis voltaicos, a inicineradora beneficia de um preço mais elevado na venda da sua energia, que no entanto possivelmente cairá no futuro. Com isso, a tarifa terá de subir.

O interesse pela EGF pode não estar apenas no mercado dos lixos urbanos. Quem controlar a empresa – com toda a sua rede de infra-estruturas e know-how – poderá ficar em excelente posição para explorar outros negócios com outros tipos de resíduos.

Este é o único temor da Associação das Empresas Portuguesas para o Sector do Ambiente (AEPSA), para quem a venda da EGF em si é bem-vinda e traz vantagens. Mas “uma saudável coexistência de operadores de resíduos só se conseguirá quando for absolutamente claro que somente os resíduos sólidos urbanos entrarão nas concessões detidas pela EGF”, sustenta a associação, numa nota enviada ao PÚBLICO.

Muitos autarcas vêem o processo de privatização sob outro prisma, como a presidente da Câmara Municipal de Abrantes, Maria do Céu Albuquerque: “O privado não vem aqui para prestar um serviço público, vem aqui para ganhar dinheiro”.

Armas e objectivos diferentes
Que a privatização está a abrir uma guerra entre o Governo e os municípios não há dúvida. Mas nem todos parecem querer lutar com as mesmas armas, nem pelos mesmos fins.

A via judicial só foi utilizada até agora uma vez. Numa providência cautelar que intentou há pouco mais de uma semana, a Câmara Municipal de Loures argumenta que a maioria do capital da Valorsul tem de ser pública e isto só pode ser alterado pelos sócios em sede própria, o que não foi feito.

A providência cautelar argumenta ainda que a privatização, na prática, levará à extinção da própria Valorsul. A empresa foi criada exclusivamente para gerir um sistema multimunicipal –, ou seja, onde o Estado tem uma intervenção directa. Mas, com a venda da EGF, o Estado deixa de ter esta intervenção e o sistema multimunicipal, por isso, deixa de existir legalmente.

O ministro do Ambiente tem-se recusado a comentar as acções judiciais, dizendo que é um assunto que diz respeito exclusivamente aos municípios. Mas afirmou na quarta-feira que a movimentação contra a privatização “é um autêntico tiro no pé”, pois vai desvalorizar a EGF perante os concorrentes.

O Governo também não deu até agora qualquer indicação de como se defenderá das acções em tribunal. Uma possível saída seria decretar o interesse público da privatização. 

Ainda não é certo se haverá ou não uma chuva de providências cautelares. A Associação de Municípios da Região de Setúbal já anunciou que também vai avançar. Mas outros municípios estão a escolher outras vias. Os 25 que são servidos pela Valnor – do Alto Altentejo e parte da Beira interior – querem exercer um direito que está num acordo parassocial da empresa: o de comprar, antes da privatização, as acções suficientes para obter a maioria do capital. “Não nos opomos à entrada do capital privado. Mas entendemos que o domínio deve manter-se público”, justifica Maria do Céu Albuquerque, da Câmara de Abrantes.

Entre os municípios que integram a Valorlis – concessionária que serve a Região Oeste – há uma grande preocupação por não se saber o valor mínimo a que eventualmente poderão vender a sua participação na empresa ao comprador da EGF – uma possibilidade prevista no processo de privatização.

Isto mostra que, na guerra em torno da privatização, nem todos têm os mesmos objectivos. “Não temos nada contra a privatização da EGF, mas queremos poder partilhar dos benefícios”, diz Paulo Santos, presidente da Câmara Municipal da Batalha. Os privados, diz Paulo Santos, terão vantagens que não estavam previstas até agora. Por exemplo, o aumento do prazo da concessão à Valorlis de 2021 para 2034 “tem um valor económico”, explica o autarca.

Além disso, se a concessão terminasse em 2021 e a tutela regressasse aos municípios, estes poderiam ficar desde logo com as infra-estruturas. “Poderíamos fazer duas coisas: ou gerir ou vender. Agora não podemos fazer nada”, completa Paulo Santos.

A guerra promete mobilizar sobretudo sistemas de grande importância, pelo seu valor no seio da EGF e pelo peso político. Não é por outro motivo que a principal batalha está a ser travada na Valorsul, com o socialista António Costa e o comunista Bernardino Soares como principais protagonistas.

Foi aí que os sindicatos também começaram a sua luta, como uma greve em Março. No auge da paralisação, Lisboa decidiu enviar os seus lixos para a vizinha Tratolixo, contra a exclusividade que tem com a Valorsul. E António Costa prometeu quebrar esse monopólio e procurar outras alternativas, caso a privatização avance.

Por ora, a Tratolixo não seria, certamente, a melhor alternativa, dado que esta empresa actualmente envia à própria Valorsul boa parte dos seus resíduos. O presidente da Câmara Municipal de Sintra, Basílio Horta, diz, no entanto, que a Tratolixo está solidária. “A nossa intenção não é procurar clientes. Mas não podemos fechar as portas”, afirma.

A Norte, a Lipor - que congrega apenas municípios, sem a EGF – vê na privatização, uma janela para maximizar o uso da sua incineradora com resíduos que eventulamente venham de outros concelhos. E há empresas privadas também já a movimentar-se, à boleia do conflito da privatização. À Associação de Municípios do Vale Douro Norte – que está no sistema multimunicipal gerido pela Resinorte – já chegou uma proposta de uma tecnologia alternativa para tratar os seus resíduos urbanos.

Com muitos interesses e armas em jogo, a guerra do lixo deixa de fora ainda uma questão para a qual alerta José Eduardo Martins, ex-secretário de Estado do Ambiente: o que acontecerá depois de terminado o período de concessão em 2034 e a tutela do lixo voltar para as autarquias. “O Estado vai fazer um encaixe agora, mas vai deixar o caos completo”, antecipa.

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