Quase 300 médicos receberam em média 13 mil euros por mês em hospitais do SNS

Auditoria do Tribunal de Contas detecta pagamentos extraordinários feitos a médicos que estavam no seu horário normal de trabalho.

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Pelo menos 30 cirurgias ilegais foram realizadas na clínica em Pristina Carlos Lopes

Apesar das tabelas salariais, as irregularidades na remuneração dos médicos persistem e muitas das consultas e cirurgias feitas durante o horário normal em 2009 e 2010 foram pagas como se os clínicos as tivessem realizado em horas extraordinárias. Aliás, há casos de hospitais que a meio do ano já atingiram o número de cirurgias programadas para determinada área e que a partir daí fazem os restantes seis meses com pagamentos suplementares e mais onerosos, mas dentro do horário do clínico.

As informações fazem parte da “Auditoria às remunerações mais elevadas pagas pelas unidades hospitalares que integram o Serviço Nacional de Saúde”, elaborada pelo Tribunal de Contas, e a que o PÚBLICO teve acesso.

De acordo com o mesmo documento, numa análise aos 295 médicos com ordenados mais elevados em todo o país constatou-se que em 2009 e em 2010 receberam em média 13 mil euros por mês – o que significa que em cada ano custaram ao todo 46 milhões de euros. Em 2011 e em 2012 o Ministério da Saúde conseguiu regularizar, em parte, muitas das situações. O problema é que isso teve um preço: os médicos começaram a produzir menos e isso traduziu-se no aumento de listas de espera de algumas áreas que tinham conseguido reduções na ordem dos 40% entre 2008 e 2010.

“O agravamento dos tempos de espera que ocorreram entre 2011 e 2012 coincidiu com a redução das remunerações destes mesmos médicos”, diz o tribunal, mas que reforça que muita da produção podia ter continuado a ser feita no horário normal. Por seu lado, os conselhos de administração garantiram a este organismo que a carência de recursos humanos fez com que a única forma de garantir o acesso fosse por pagamentos extra, mas comprometeram-se a analisar melhor as sobreposições.

De acordo com o relatório, entre os 295 médicos (a maioria chefes de serviço) a remuneração mensal mais baixa foi de quase 6000 euros, no Hospital Garcia de Orta e no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, e a mais elevada foi de 53 mil euros, no Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio. Em geral, os clínicos conseguem mais do que duplicar o ordenado base com horas extraordinárias, horas de prevenção ou incentivos pagos no âmbito do programa SIGIC (Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia), mas muitas vezes de forma irregular.

"Constatou-se a realização de produção adicional em sobreposição com o horário normal de trabalho e com o regime de prevenção. Tal significa que a actividade normal dos respectivos serviços teria capacidade para realizar as mesmas cirurgias", explica o tribunal, que relata que houve médicos a "trabalhar com as horas extraordinárias em apenas um ano o que deveriam trabalhar em dois anos com horário normal".

Já no final de Março o PÚBLICO tinha avançado em primeira mão um relatório da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) sobre as irregularidades nos pagamentos a médicos. No caso mais flagrante, o de um oftalmologista no Algarve, foram pagos mais de 1,3 milhões de euros no âmbito do SIGIC, sendo que 1,2 milhões diziam respeito a intervenções feitas durante o horário do médico. As informações apuradas pela IGAS resultaram em vários processos disciplinares que vão permitir que o Estado recupere mais de 1,3 milhões de euros. O ministro Paulo Macedo também se comprometeu a responsabilizar os conselhos de administração dos hospitais.
 
Oftalmologista lidera tabela com 53 mil euros mensais
Agora, na auditoria, o TC optou por escrutinar os cinco profissionais com as remunerações mais elevadas em cada instituição e concluiu que nas especialidades dos dez médicos que receberam mais em todo o país estão oftalmologistas, ortopedistas, cirurgiões gerais, anestesistas e um pediatra. O caso mais flagrante é uma vez mais no Algarve, com um oftalmologista a receber mensalmente mais de 53 mil euros em 2009 e 48 mil em 2010. Contudo, em 2011 e 2012 já passou para 27 mil e 11 mil.

Nestes dez casos, aliás, as remunerações de 2009 para 2012 caíram entre 32% e 93%. Para isso "contribuiu significativamente a diminuição da realização da produção cirúrgica adicional SIGIC em 2012 resultante das medidas de contenção orçamental", diz o relatório, que condena as "distorções remuneratórias com benefício para algumas especialidades médicas". "Estas remunerações resultaram de decisões deliberadas de gestão da responsabilidade dos respectivos conselhos de administração, que concentraram a produção de cuidados de saúde nestes profissionais e que conjugaram de forma irregular e pouco transparente ou, eventualmente, sem controlo interno adequado, várias componentes remuneratórias", lê-se no documento. Este salienta, porém, que os médicos a receber mais em 2012 são quase sempre os mesmos dos anos anteriores, o que revela que os conselhos de administração protegem "o seu status remuneratório".

Depois, o TC concentrou-se nos três hospitais que pagaram mais aos cinco clínicos com salários mais elevados: a Unidade Local de Saúde (ULS) do Baixo Alentejo, o Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio e o Centro Hospitalar do Médio Tejo. Só a ULS do Baixo Alentejo gastou 1,9 milhões em 2009 e 1,7 em 2010.

Horas extraordinárias e prevenções mais do que duplicam salários
Em geral, nestes hospitais a remuneração base representou pouco menos de metade dos montantes totais, sendo o resto trabalho extraordinário (mais de 25%), produção adicional (cerca de 10%) e quase 8% com prevenções. O TC salienta que os médicos tiveram uma redução salarial média entre 2009 e 2012 de 24% devido ao memorando de entendimento com a denominada troika (FMI, CE e BCE), mas também denuncia casos de cirurgiões na área da ortopedia que escolhiam as cirurgias mais complexas, pois recebiam mais nesses casos na ULS do Baixo Alentejo.

Na mesma instituição os oftalmologistas tinham um sistema de pontos a partir do qual recebiam remuneração extraordinária. Como os pontos das cirurgias eram atingidos até Maio ou Junho, os restantes meses eram pagos como produção adicional. Um duplo problema, visto que no primeiro semestre eram sobretudo feitas cirurgias simples, em que se operam três a quatro doentes numa hora, o que permitia superar rapidamente os pontos. "Em 2009 e 2010 mais de 80% do total das cirurgias realizadas nesses anos e mais de 69% em 2011 foram remuneradas "à peça", de acordo com a tabela do SIGIC, apesar de algumas terem sido realizadas durante o período normal de trabalho." O TC relembra que muitos destas infracções são "susceptíveis de gerar eventual responsabilidade financeira e sancionatória".

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