Na Cova da Iria, os smartphones lado a lado com os lenços brancos

Selfies com a Nossa Senhora em pano de fundo. Tablets que abrigam do sol. Bancos que fazem de tripé. Uma peregrinação a Fátima continua a ser uma manifestação de fé. Mas o cenário mudou. E com as redes sociais nem é preciso estar lá para acompanhar as celebrações.

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As camisolas amarelas fluorescentes todas iguais destacam um grupo de mais de 20 pessoas entre a multidão de 200 mil. Pertencem ao grupo liderado pelos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua, no distrito de Vila Real, e foram a pé até à Cova da Iria, Ourém, distrito de Santarém. Isabel Magalhães, de 39 anos, estica os braços e tenta equilibrar o smartphone na ponta dos dedos, ao mesmo tempo que se ergue nos pés doridos da peregrinação até ao Santuário de Fátima. De olhos semicerrados, para evitar a forte luz solar, procura o melhor ângulo para fotografar o momento e actualizar no Facebook mais um capítulo da viagem que começou a 5 de Maio, uma semana antes.

“Desde o início que temos partilhado imagens e é curioso que as pessoas comentam ou ligam a pedir para rezarmos por elas. Mas a ideia [de pôr as coisas online] surgiu para dar notícias aos que ficaram em casa”, diz Isabel ao PÚBLICO.

A importância da família e do fortalecimento das relações foi, precisamente, um dos temas abordados pelo patriarca latino de Jerusalém, que presidiu à eucaristia deste ano. Durante a homilia, Fouad Twal apelou à unidade da família e recordou que este será o tema central no Sínodo dos Bispos de Outubro – altura em que temas como o divórcio, a contracepção ou as uniões entre pessoas do mesmo sexo serão debatidos. Para tal, o Papa Francisco propôs um inquérito no mundo católico, lançado a 18 de Outubro de 2013, pedindo aos leigos que se pronunciassem. Em Fevereiro, as respostas portuguesas já tinham sido enviadas para o Vaticano e, segundo o porta-voz da Conferência Episcopal, o padre Manuel Morujão, “os casos de famílias que não estão segundo as normas canónicas são apresentados como desafios pastorais".

Em Fátima, o patriarca que presidiu à missa apresentou um sentido mais lato de família, referindo-se à “família internacional” de que fazem parte as “nações e povos do mundo”, apelando à paz e referindo-se aos conflitos no Médio Oriente e em todo o mundo. Mas também sublinhou a importância de se defender a família como algo que deriva do “matrimónio indissolúvel entre um homem e uma mulher” e que deve ser preenchido por uma “generosa fecundidade”.

Rezar de tablet na mão
Quem passa pelo Santuário de Fátima, nota que a tecnologia tem maior presença. Lado a lado com os tradicionais lenços e rosas brancas, vê-se o smartphone que fotografa e que permite actualizar o Facebook. 

Usar esta rede online "é uma forma de comunicação simples", acrescenta o comandante dos bombeiros da Régua, António Fonseca, de 40 anos. No grupo dele há pessoas mais velhas e os filhos queriam ter notícias.

É essa rede social que conquista a maior parte dos que estão ali e online, em detrimento de outras alternativas como o Twitter, na qual o Papa Francisco se identifica com a conta @Pontifex e tem 4,04 milhões de seguidores. “É uma forma nova de partilhar o que sinto aqui e que não se explica. E claro que só vê quem quer”.

Nas redes sociais, o peregrino de hoje partilha tudo: o sítio onde descansa; o que come; e o número de bolhas nos pés. O próprio Papa, quando a missa decorria em Fátima, deixou mais uma mensagem, em inglês, no Twitter: "Leiamos os evangelhos, um pouco em cada dia. Isto ensinar-nos-á o que há de mais essencial nas nossas vidas: amor e misericórdia".
 
 

 


Por vezes, nos momentos de maior introspecção, há crentes que baixam a cabeça, rezam e não largam o tablet – equipamento que, quando o calor mais aperta, até substitui chapéus e panamás. 

Padres, freiras, leigos e pessoas mais velhas são as que mais aderem. Os bancos pequenos que garantem lugar sentado durante a longa cerimónia também servem de escadote ou de tripé. Quando há um momento mais importante, os braços erguem-se – e começa a gravação. 

Há quem opte pelas selfies (autoretratos), sobretudo no fim da missa, até porque há painéis a avisar que o silêncio é importante e que se devem evitar fotos de grupo. Regina Gomes-Chico, uma mexicana de 32 anos, tira uma selfie com a Nossa Senhora de Fátima em pano de fundo. “É a segunda vez que venho cá, pois tem muito significado para mim e quero registar este momento de devoção. Ainda não partilhei imagens, mas assim que tiver acesso à Internet vou fazê-lo”, diz.

Distracção ou nova evangelização?
Há quem esqueça os quilómetros já feitos e percorra mais uns quantos para fazer vídeos com planos diferentes. Como Francisco Melo, de 66 anos, que se estreou em Dezembro com o “novo brinquedo” e que agora publica imagens no Facebook feitas em pleno corredor da peregrinação de joelhos. 

Maria Pica, de 49 anos, que vem todos os anos a Fátima, desde 2007, agradecer o facto de o neto, nascido com pouco mais de 20 semanas de gestação, ter sobrevivido. “Encaro isto [a divulgação no Facebook] como uma forma de evangelizar e de divulgar a fé. Sei que há quem não concorde e que ache que são elementos de distracção, mas tudo depende do uso que damos e do respeito com que o fazemos”.

“Agradecer” é, aliás, a palavra mais usada pelos fiéis, que não gostam de falar em “pedir”. As promessas, essas mudam pouco e são maioritariamente ligadas a razões de saúde. Mas também há sinais dos tempos: a crise e o desemprego estão presentes nas orações.

Também a freira Maria Gorete, de 33 anos, das Irmãs Missionárias do Espírito Santo, considera que as tecnologias são uma oportunidade para “chegar a quem está mais longe, que normalmente nem vai à missa, mas que assim se aproxima da vida da igreja e vive uma fé dinâmica, como preconiza o Papa Francisco, que tem trazido muita harmonia e abertura” à comunidade. E é para os que estão longe, em Moçambique, que o padre Pedro, de 42 anos, vai publicando a selecção dos melhores momentos do dia. “Não escrevo quase comentários, pois a fé sente-se. Mas claro que estes aparelhos nos permitem chegar a outros locais onde antes não estávamos e evangelizar”, sublinha.

José Pereira, de 34 anos, que, um pouco contra a sua vontade, tirou uma fotografia para a mulher, vê nestes actos uma postura de que não gosta. "Nas celebrações devemos estar concentrados na oração e não a tirar fotografias a toda a hora. O importante é estar e participar, não é andar com distracções”, argumenta.

Pelo contrário, Renata Vargas de Sá, de 47 anos, espera que muita gente veja no Brasil a viagem religiosa que está a fazer. “Ponho no Facebook o que se passa aqui para que a gente veja que a fé não acaba e que só está aumentado. Fátima é maravilhosa e não se descreve em palavras”, frisa a turista brasileira, que admite que a abertura do Papa Francisco proporciona mais “descontracção” e “inovação” na forma como as pessoas se relacionam com a Igreja, até porque “Maria é do mundo todo e assim chega mais longe ainda”.

O bispo de Leiria-Fátima, António Marto, ao despedir-se dos fiéis, pediu aos presentes que regressassem a casa “alegres e cheios de fé e de amor”, mas sobretudo “mais jovens” com a presença renovada no local consagrado. Um local que, sendo o mesmo de sempre, deixa à mostra pequenas mudanças, sinais de uma adaptação aos tempos.

 

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