Morreu Tolentino de Nóbrega, jornalista sem medo

Jornalista do PÚBLICO morreu na madrugada desta terça-feira com um cancro.

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Adriano Miranda

Tolentino de Nóbrega, jornalista do PÚBLICO, morreu na madrugada desta terça-feira com um cancro que o impossibilitou de acompanhar as últimas eleições para o governo regional no mês passado. O funeral realiza-se às 15h de quarta-feira na sua terra natal, Machico, e será precedido de uma missa às 13h30 na Igreja Velha de São Martinho no Funchal.

Jornalista sem medo, como é recordado por colegas e amigos, pessoas que com ele fizeram jornais ou que leram as suas crónicas, notícias e reportagens, Tolentino de Nóbrega, correspondente do PÚBLICO na Madeira, tinha um cancro que o venceu na madrugada desta terça-feira.

Mais do que irónico, o momento é “trágico", diz Vicente Jorge Silva, fundador e director do PÚBLICO até 1996, sobre essa impossibilidade – de cobrir as primeiras eleições na Madeira sem Alberto João Jardim. Uma impossibilidade que se abateu sobre quem era "um exemplo absolutamente admirável de resistência ao regime paraditatorial que existiu durante 40 anos na Madeira"; e uma pessoa portadora de um "heroísmo quixotesco" numa ilha pequena em que quase todos se curvavam perante "um ditadorzeco".

Vicente Jorge Silva lembra "o papel histórico único" do colega e “grande amigo” dos tempos em que juntos fizeram o Comércio do Funchal, como "representante do que é mais nobre no jornalismo – a capacidade de contar a realidade com tanta verdade quanto for possível e sem depender da versão oficial que se quer impor às pessoas".

Resistir como quem respira
Tolentino de Nóbrega tinha 63 anos, dos quais mais de 40 de jornalismo, sempre na Madeira, que dizia ser “uma terra maravilhosa”, apesar de aí ter sido ameaçado várias vezes e controlado quase sempre. “Não tinha medo de denunciar nada e fundamentava tudo o que escrevia”, lembra a colega e amiga Lília Bernardes a partir do Funchal.

“Durante 25 anos, o Tolentino escreveu com independência e liberdade. Se houve lugar difícil para se ser jornalista nestes anos, foi a Madeira", declara Bárbara Reis, directora do PÚBLICO. "O Tolentino tinha o desafio de ser correspondente num lugar onde havia notícias importantes – para não dizer incríveis – todos os dias. Mas teve a sabedoria de fazer duas coisas: procurá-las e resistir, com um sorriso, às provocações e pressões que, constantemente, o poder regional lhe foi lançando pelo caminho”, acrescenta.

Com a mesma espontaneidade com que dedicou o Prémio Gazeta 1998, que lhe foi atribuído pelo Clube de Jornalistas, a todos os colegas que "na imprensa regional ou na retaguarda das redacções noticiam o que é ignorado", denunciava ilegalidades e resistia às pressões, com naturalidade.

“Para ele era como respirar”, diz Vicente Jorge Silva, lembrando que o jornalista foi alvo de atentados da FLAMA (Frente de Libertação da Madeira, que defendia a independência da região no período pós 25 de Abril de 1974) e “sofreu muito ao longo do período jardinista”.

Jornalista e professor
Tolentino de Nóbrega nasceu no município de Machico na Madeira, em 1952. Licenciou-se na Escola Superior de Artes Plásticas da Madeira e ao longo da sua vida de jornalista continuou a dar aulas de Geometria Descritiva na escola secundária que foi a antiga Escola Industrial do Funchal. Começou a actividade na imprensa como colaborador no jornal Comércio do Funchal aos 20 anos.

Desde cedo, envolveu-se também na regulação da profissão, tendo sido secretário da mesa da assembleia geral do Sindicato dos Jornalistas (1985/86) e vice-presidente da assembleia geral (1996/97), além de membro do conselho geral do sindicato entre 2002 e 2012. Integrava agora, como suplente, a lista da Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas, função para a qual já tinha sido eleito, também enquanto suplente, entre 2008 e 2011.

Como jornalista, presenciou o 25 de Abril, o início da autonomia, toda a história recente da Madeira. Entre 1974 e 1993 integrou a redacção do Diário de Notícias do Funchal. Foi colaborador do PÚBLICO desde a fundação, entrando para o quadro em 1992.

Em 2006, foi um dos seis jornalistas condecorados com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique pelo então Presidente Jorge Sampaio. Quando foi distinguido com o Prémio Gazeta de 1998, disse, numa entrevista ao jornal Record, não ser um crítico de Alberto João Jardim, mas de “todas as formas de autoritarismo e de todas as formas de governo que desrespeitem as liberdades”. E acrescentou: “Sem uma imprensa livre não há democracia. Se há, numa região de Portugal, pressões e coacções contra jornalistas, restrições ao acesso às fontes de informação, não há democracia plena, há défice democrático."

O secretário-geral do PS, António Costa, fez chegar uma mensagem ao PÚBLICO em que destacava o "respeito de todos os democratas e amantes da liberdade" pela forma como Tolentino de Nóbrega, "em circunstâncias reconhecidamente difíceis, soube enobrecer a sua função de jornalista".

Energia inesgotável e resiliência
O PSD-Madeira lamenta a morte de Tolentino de Nóbrega, dizendo que “a Madeira perdeu um dos maiores nomes do jornalismo”, uma pessoa que “sempre defendeu os princípios que norteiam a liberdade de expressão e opinião”.

Nas redacções do PÚBLICO em Lisboa e no Porto, o jornalista é recordado como "um grande resistente" que tinha uma energia "inesgotável" e uma "capacidade de resiliência", uma "pessoa que nunca se deixou amedrontar" e ao mesmo tempo dava prova de "um sentido de humor, em crónicas, que retratava muito bem o que foi a Madeira durante décadas". Foi um "jornalista que nunca desistiu dessa sua batalha que era levar a informação todos os dias da forma mais rigorosa e verdadeira possível" aos leitores. Consciente do escrutínio cirúrgico do poder regional, dizem colegas que mais privaram com ele. "Alberto João Jardim controlava toda a informação, todos os passos que ele dava e os contactos que fazia."

Tolentino era casado e tinha três filhos.

Na quarta-feira, centenas de pessoas foram ao funeral, que começou com missa na igreja Velha de São Martinho, no Funchal, e terminou no cemitério do Machico. A igreja estava cheia como um ovo e muitas pessoas não conseguiram entrar. A família decorou a igreja com dezenas de cravos vermelhos e no fim da missa os três filhos do jornalista ofereceram um a cada uma das pessoas presentes. Na homilia, e num cenário marcado pelo dourado do altar, o vermelho dos cravos e a luz das velas, o padre falou de Tolentino de Nóbrega, de liberdade de expressão, do PÚBLICO e da sua angústia em relação a “quem vai agora escrever sobre o próximo orçamento regional?”. Assistiram à cerimónia familiares, amigos, colegas e representantes do governo regional e dos partidos da Madeira.

Notícia actualizada a 9 de Abril, tendo-se acrescentado o parágrafo final sobre o funeral.

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