Minorar a violência contra as mulheres

Não basta existir legislação se, depois, essa mesma legislação não se cumpre com rigor.

A Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa veio publicitar que, entre 2011 e 2014, deduziu acusação por crime de homicídio em dez inquéritos de violência doméstica, sendo oito na forma consumada e dois na forma tentada. Para um período de três anos, convenhamos, tais números revelam-se insuficientes para quem tutela a acção penal. Lembro que entre 2010 e 2014, 131 mulheres, pelo menos, morreram às mãos dos seus “príncipes agressores”.

A Lei n.º 72/2015, de 20 de Junho, veio definir os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2015-17, em que os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, assim como a violência doméstica, são considerados crimes de investigação prioritária. Isso pressupõe, desde logo, que são crimes de investigação urgente a ser conduzida por um magistrado do Ministério Público, devendo este encarregar o competente órgão de polícia criminal de proceder à realização de rápidas diligências de investigação e, simultaneamente, levar pessoalmente a cabo as diligências mais relevantes, como o interrogatório dos arguidos e a inquirição das vítimas.

No entanto, não basta existir legislação se, depois, essa mesma legislação não se cumpre com rigor ou, por propositada complexidade, não se consegue mesmo cumprir. Embora exista uma campanha contra a violência sobre as mulheres, estamos ainda muito longe do necessário.

A violência doméstica inicia-se por uma série de coacções psicológicas que, por norma, acaba sempre por levar a vítima à depressão, ansiedade e  comportamentos instáveis, motivados por sentimentos de culpa mesclados de vergonhas e medos. Na fase inicial da violência, mesmo que a vítima denuncie o agressor, não existe protecção efectiva. E mesmo que  à dita vítima lhe sejam infligidos maus tratos psicológicos, o inquérito emperra, por norma, em intermináveis diligências de audição de testemunhas, a fim de confirmar se o que a vítima diz é ou não verdadeiro. O princípio é sempre o mesmo: não se acredita em quem denuncia e existem muitas "dúvidas", tornando a eficiência do serviço de investigação artificial.  No fundo, para se ser digno de protecção tem de se levar pancada, apresentar fracturas ou hematomas, enfim, exibir sinais exteriores de algo de violento que aconteceu.

Uma tal inércia, em última análise, só pode trazer benefícios ao agressor, entusiasmando-o a prosseguir no seu bullying e, perante a fragilidade da sua companheira, arrogando-se, como não raramente sucede, a passar a uma segunda fase da violência, que é a do exercício do poder de controlo sobre a sexualidade da vítima. A vergonha, o distúrbio emocional e o comportamento sexual inseguro pela baixa auto-estima sujeita-se aos caprichos do marido ou do companheiro. Aos poucos, a vítima perde então o direito de dispor do seu próprio corpo, e submete-se a actos sexuais que não deseja e não consente.

Diminuir as assustadoras estatísticas da violência no casal por maus tratos psíquicos, constitui uma verdadeira obrigação de política criminal e, a meu ver, só se tornará viável se for atalhada logo a partir da emergência dos primeiros sinais de agressão, isto é, bem antes dos cônjuges ou companheiros terem passado à agressão física. Se mantivermos o mesmo modelo de investigação, baseado exclusivamente em depoimentos que nunca mais acabam, não estaremos a proteger a vítima, mas sim o agressor. A investigação tem de ser interdisciplinar, a equipa não pode ser exclusiva de polícias, e tem de integrar outros ramos do conhecimento, nomeadamente a psicologia de intervenção clínica do trauma da vítima. Além disso, seria da maior utilidade criar um novo modelo de relatório clínico adequado ao sofrimento psíquico da vítima, através do qual se pudesse estabelecer uma avaliação pormenorizada da vivência abusiva e dos danos a ela causados e, depois, feito o diagnóstico, encaminhá-la para uma entrevista com uma assistente social, a fim de completar a avaliação dos contextos social e familiar e se definir o apoio institucional necessário a aplicar.  Tal como as coisas neste momento se encontram é não faz qualquer sentido: ser o funcionário judicial que investiga, ouve e redige as declarações de testemunhas de um crime de furto e, a seguir, vai ouvir e redigir as declarações de testemunhas de um crime de violência doméstica.

A prova testemunhal tem de ser avaliada apenas no seguimento do laudo de perícia médico-legal e do relatório social para se obter conhecimentos que, de modo nenhum, estão na posse do investigador ou do julgador.

Sendo certo que aos tribunais está reservado o direito de punir os infractores, também não é menos certo que isso só é possível quando a investigação é adequada e reuniu um conjunto de provas que permitem valorar a existência de um crime, determinar o seu executante e aquilatar as suas responsabilidades. Sei muito bem que a violência sobre as mulheres não acabará só por acção da justiça, mas também sei muito bem que a justiça, se for conscientemente exercida, poderá minorar a violência sobre as mulheres.

Advogado, sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados

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