Ministério quer autorizar farmácias que tribunais declararam ilegais

Lei impõe concurso público para abertura de novas farmácias, mas uma norma transitória abre porta à autorização para farmacêuticos que criaram expectativas através de acto administrativo que foi anulado

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Farmacêuticos têm o dever de informar os utentes sobre os medicamentos mais baratos Foto: PÚBLICO

O Ministério da Saúde pode estar em vias de autorizar o funcionamento de farmácias que foram declaradas ilegais pelos tribunais e cujos alvarás foram, em consequência disso, anulados pelo Infarmed. Aquilo que o mais elementar bom senso diria tratar-se de flagrante ilegalidade ou de desrespeito pelas decisões soberanas dos tribunais poderá passar, afinal, pela decisão de um membro do Governo.

É isto mesmo que prevê uma "norma transitória" que foi acrescentada à lei que regula a abertura de novas farmácias, o "regime jurídico das farmácias de oficina", publicado em Agosto, no qual se determina que o "critério de licenciamento de novas farmácias" terá que decorrer sempre de um "procedimento concursal". No final, no entanto, aparece a tal norma transitória prevendo que "o membro do Governo responsável pela área da saúde pode autorizar a abertura, transferência ou manutenção em funcionamento de uma farmácia". 

Além de um prazo de 90 dias para este tipo de autorização, são especificadas duas situações em que tal pode acontecer. Uma refere-se a "razões de saúde pública, de garantia de manutenção da assistência farmacêutica à população", e a outra a casos "de respeito pelas expectativas criadas pela prática de acto administrativo constitutivo de direitos posteriormente anulado".

É precisamente aqui que encaixa a situação das farmácias que os tribunais consideraram ilegais, o que obrigou o Infarmed a anular os respectivos alvarás. São ainda os resquícios do concurso para a abertura de novas farmácias, lançado em Outubro de 1999, altura em que os estabelecimentos farmacêuticos eram extremamente valorizados. Foram muitos os que venderam as suas farmácias, realizando bom dinheiro, para se candidatarem a um novo alvará. 

Nalguns casos, no entanto, os concurso foram parar aos tribunais e, em Maio de 2006, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) veio a determinar que eram ilegais as farmácias atribuídas àqueles que eram proprietários de outra farmácia à data do lançamento do concurso.

Acontece que, mesmo com a decisão do STA, o Infarmed sempre se mostrou renitente em dar cumprimento às decisões judiciais, obrigando à proposição de acções de execução e até a uma recomendação do provedor de Justiça e também a uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, todas no sentido de impor o encerramento das farmácias consideradas ilegais. Que, entretanto, se mantiveram em funcionamento durante quase uma década, uma vez que só no último ano o Infarmed começou a anular os respectivos alvarás, refazendo os concursos e atribuindo as licenças a outros farmacêuticos.

Norma transitória

São estes que alertam agora para a ilegalidade da tal norma transitória, que consideram ilegal, abusiva e violadora das decisões dos tribunais. Numa carta que há cerca de um mês endereçaram ao ministro da Saúde, Paulo Macedo, alguns destes farmacêuticos dizem que a situação é chocante e causa estupefacção e revolta. E alertam Paulo Macedo que "as sentenças anulatórias de actos administrativos têm um efeito preclusivo que impede a administração pública de renovar o acto anulado" e que, por isso, "qualquer acto que autorize aqueles farmacêuticos que não podiam ter sido sequer admitidos ao concurso é ofensivo do caso julgado e nulo". Tudo isto para além de não conceberem sequer que se possa "autorizar a abertura de farmácias sem a existência de concurso público". 

Deliberação ilegal

Lembram ainda que foi "por força de uma deliberação ilegal que [aqueles farmacêuticos] exploraram indevidamente estabelecimentos de farmácia, durante cerca de oito a 10 anos, auferindo enormes lucros dessa actividade - então muito rentável - e dos quais ficaram absolutamente privados".

O texto da dita norma transitória prevê que as autorizações do ministro só tenham lugar "mediante proposta do Infarmed", entidade junto da qual o PÚBLICO procurou, há cerca de duas semanas, saber "quais as propostas concretas e respectiva fundamentação", bem como se teria havido qualquer "solicitação/requerimento dos eventuais interessados". Na mesma data foi solicitado também ao Ministério da Saúde esclarecimento sobre "os princípios/motivos que justificam o regime de excepção", bem como sobre "se foi nalgum caso aplicado e com que fundamentação".

Na resposta, o Infarmed informou que as questões formuladas "incidem sobre procedimento administrativo em curso, pelo que a informação solicitada só poderá ser fornecida após a sua conclusão". Por parte do ministério de Paulo Macedo a resposta não foi mais esclarecedora: "Sobre o assunto apenas o Infarmed responde. O Infarmed é parte do (e representa o) ministério".

Contactado novamente na passada quinta-feira, o Infarmed esclareceu que a situação se mantinha nos exactos moldes da resposta de há duas semanas.
 

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