Ministério Público arrasa proposta sobre lista de agressores sexuais

Documento do Conselho Superior do Ministério Público considera que a proposta de lei aprovada em Conselho de Ministros é “desproporcional”, “inexequível” e viola várias normas da Constituição.

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Conselho Superior do Ministério Público tem dúvidas sobre como se vai garantir que os agressores informam as autoridades quando mudam de morada David Clifford

Um parecer do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), o órgão que tutela aquela magistratura, considera que a proposta de lei do Governo que prevê a criação da lista de agressores sexuais é “desproporcional”, “inexequível” e viola várias normas da Constituição.

O documento, com 21 páginas, analisa um por um os artigos do diploma aprovado em Conselho de Ministros — e que está agora a ser avaliado pelos deputados da Assembleia da República que solicitaram o respectivo parecer.

Sobre a possibilidade do acesso a dados da lista por parte de pais de menores de 16 anos ou pessoas que os substituam nessa função, a norma mais polémica do diploma, o CSMP mostra uma “grande apreensão quanto à sua operacionalidade”.

Isto porque, prossegue, o diploma prevê que os pais têm que alegar uma “situação concreta que justifique um fundado receio de que determinada pessoa conste do registo”. Ora tal implica que os pais disponham de elementos de identificação dessa pessoa, o que não acontecerá na maior parte dos casos.

A primeira questão levantada “respeita à forma como, na ausência de melhores elementos, o que sucede na maioria das vezes, o interessado pode reunir elementos de identificação da dita ‘determinada pessoa’”, lê-se no parecer, que teve como relator o procurador-geral adjunto Vítor Guimarães.

Podem os pais socorrer-se da polícia para conseguirem o nome dessa pessoa? — pergunta-se. Se sim, como se compatibiliza essa possibilidade com as limitações previstas na legislação penal para as identificações feitas pelas polícias, que obrigam, por exemplo, à existência de “fundadas suspeitas da prática de crimes” ou “da pendência de processo de extradição ou de expulsão”? — questiona-se. E se a polícia se confrontar com a recusa do visado em se identificar?

São muitas as interrogações do CSMP, que nota com “perplexidade” o facto de se prever também que os pais que acedam a alguns dados da lista de agressores fiquem obrigados a guardar segredo sobre estes, sem que o diploma preveja qualquer sanção quando tal for desrespeitado.

Perigo de “tresloucada agressão”
Para o conselho, a possibilidade de os pais terem acesso a dados da lista viola “princípios basilares do ordenamento jurídico, como seja o da reinserção do agente por força do cumprimento da pena”, previsto na Constituição, e “o carácter reservado do exercício das actividades de prevenção dos órgãos, serviços e forças de segurança”, igualmente consagrado no texto fundamental e na Lei de Segurança Interna. Transpor esse exercício para os cidadãos em particular, diz-se, não tem em conta “os incontornáveis perigos para a segurança, ordem e tranquilidade pública” e pode constituir a “ignição de tresloucada agressão” contra quem fizer parte da lista.

O CSMP recorda que há pelo menos um registo em Portugal de um pai que foi violentamente agredido pela população “erroneamente tomado como estando a abusar sexualmente da sua própria filha quando brincava com ela”. E lembra as palavras de um investigador inglês, Therry Thomas, numa conferência internacional que ocorreu em Setembro na Universidade do Porto, a propósito do percursor sistema de registo existente no Reino Unido. “A imprensa tablóide conseguiu chegar às listas e publicou nomes e moradas de agressores. Alguns foram agredidos por vizinhos. Houve quem se tivesse suicidado”, relatou o investigador inglês, citado no parecer.

A análise nota ainda que “a proposta em apreciação parece desconsiderar a circunstância de uma parte significativa dos crimes de abuso sexual ser cometida no ambiente familiar”. Sugere, por isso, que a possibilidade de acesso dos pais a dados da lista seja substituída pelo “incremento de policiamento de proximidade em relação aos locais de residência de agentes envolvidos no fenómeno [crimes sexuais]”. “Aí, sim, estará melhor garantida a dissuasão”, defende-se.     

Em causa “presunção de inocência”
Referindo que entre as finalidades da criação do chamado “registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor”, constam o auxílio à investigação criminal e o “acompanhamento da reinserção” do agressor, o parecer realça que este último fim é incompatível com a possibilidade de o registo perdurar para além do cumprimento da pena. “Afigura-se de constitucionalidade duvidosa a norma”, diz-se, e “para além de achacar o efeito ressocializador da pena a um nível inadmissível, prolonga os efeitos da condenação sobre uma vertente que se deve ter por satisfeita com o cumprimento da pena”.

Por outro lado, o CSMP considera que ao se prever que a lista possa servir como ponto de partida para a investigação de novos crimes, é posto em causa “o princípio da presunção de inocência”, consagrado na Constituição.

Conclui, por isso, que a lista deveria “assumir-se com fim exclusivo de prevenção criminal”.

Já o facto de a lista poder incluir nomes de agressores condenados antes da sua criação é para o CSMP inconstitucional, já que implica “a compressão de direitos individuais, de forma retroactiva”.     

As principais críticas do Ministério Público

— São apontadas diversas dificuldades à operacionalização da lei, quer na forma como os pais podem aceder a dados da lista, quer na forma de fiscalizar a nova obrigação dos agressores sexuais condenados de informarem as autoridades sempre que mudem de morada.
— Sugere-se que a lei clarifique quais são os órgãos policiais que têm acesso ao ficheiro central com os dados dos agressores, se todos ou apenas a Polícia Judiciária, que tem competência reservada na investigação de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores.
— Defende-se que a lista só pode conter dados sobre agressores sexuais condenados após a criação desta, já que, a não ser assim, tal pode violar a Constituição, que proíbe a retroactividade das leis penais.
— Critica-se a amplitude de dados que farão parte da lista (além do nome completo do agressor, a morada da sua residência e do seu local de trabalho, os diversos números de identificação — civil, fiscal, segurança social, passaporte, registo criminal —, a data de nascimento, a naturalidade e a nacionalidade).
— A finalidade da lei deve restringir-se à prevenção criminal.
— Constata-se com perplexidade que não é prevista qualquer sanção para os cidadãos que divulgarem dados constantes da lista, os quais são abrangidos por segredo.

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