Mestrados já são condição para entrar mais rápido no mercado de trabalho

Se antes eram um passaporte para a carreira académica, hoje as empresas preferem recrutar alunos com mestrado. Bolonha internacionalizou esta formação e há cada vez mais estudantes de outras áreas à procura de um lugar nos programas mais reputados

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ENRIC VIVES RUBIO

João Cerqueira, de 22 anos, está plenamente convicto de que sem um mestrado será mais difícil encontrar trabalho. As empresas, diz, preferem “investir num activo que tem menos risco e mais competências”. Depois da licenciatura em Direcção e Gestão Hoteleira na Escola de Hotelaria do Estoril pôs mãos à obra e começou a estudar a oferta nacional de programas de mestrado em Gestão. “Senti que as competências que aprendi na licenciatura não eram suficientes”, explica.

Escolheu a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa que, com a sua estratégia de internacionalização e com 35% de alunos estrangeiros, se passou a chamar Nova SBE (Nova School of Business & Economics). Tem, nas palavras de João Cerqueira, “um dos melhores mestrados em Gestão do país”. Na Nova fala-se em inglês desde o segundo ano da licenciatura (e em breve haverá a opção de ter o curso em inglês logo no primeiro ano) e a mobilidade internacional é a palavra de ordem. Depois de falar com antigos alunos, João decidiu desembolsar perto de nove mil euros para subir no grau de qualificações académicas. “Decidi fazer mestrado, sem dúvida, pela empregabilidade que me dá. Não foi para ter o grau de mestre. Hoje quem quer seguir carreira académica faz doutoramento”, garante.

O mundo mudou. Não só com a reforma de Bolonha, mas com a internacionalização dos negócios e empresas que pedem trabalhadores cada vez mais móveis e adaptados a diferentes realidades culturais. “Para sermos relevantes, temos de nos afirmar como uma escola de topo na Europa. Isso exige criar e desenvolver talento, com uma visão internacional, ligada à tecnologia, às empresas e à capacidade de inovar”, diz Daniel Traça, director da Nova SBE. Esta dimensão global, com alunos e professores estrangeiros e carreiras que hoje se fazem fora do país, os programas de Gestão têm ganho adeptos e vêem aumentar o número de candidatos. Na Nova, o crescimento da procura é de cerca de 30% ao ano. E há cada vez mais alunos de outras áreas a querer aprender Gestão.

“[Vêm] do design, ao turismo, passando pela engenharia. Hoje temos mestrados com pessoas que vieram de áreas diferentes e isso é o mundo do fim do século XXI. Estes alunos, independentemente do seu background, vão para as empresas e têm sucesso”, garante.

O cenário é idêntico na Católica Lisbon, a escola de Gestão da Universidade Católica, considerada a 25.ª melhor da Europa pelo Financial Times. “Tem havido um crescimento de candidatos de outras áreas (ciências sociais ou engenharia, por exemplo), não só porque há menos emprego em determinados sectores, mas porque os alunos, quando entram para a licenciatura, vão descobrindo que têm apetências e interesses por uma área que pode não ser aquela em que estão. Agora podem dirigir-se para o mestrado”, diz Francisco Veloso, director da Católica Lisbon. O reconhecimento da escola a nível global também tem atraído novos interessados, portugueses e estrangeiros, que vivem num contexto de grande mobilidade internacional.

“O que está a acontecer na Europa e que se vai aprofundar ao longo dos próximos anos é o estabelecimento de um ranking europeu, uma ordem de qualidade muito próxima do que sucede nos Estados Unidos. É relativamente fácil identificar as 20 ou as 50 melhores escolas americanas, são sempre as mesmas. Na Europa isso não está assim tão estabelecido, mas acredito que, em dez anos, haverá escolas de referência a que todos os alunos querem ir”, continua.

Francisco Veloso acredita que Bolonha revolucionou o ensino em muitas dimensões. E uma delas foi ter alterado a estrutura e utilidade dos mestrados. “Hoje não são vistos como um plataforma de acesso a uma carreira académica, mas sim como uma base de entrada no mercado de trabalho para a maioria dos estudantes”, afirma.

Juntar a teoria à prática

José Varejão, director da Faculdade de Economia do Porto (FEP), explica que nesta instituição os dois perfis de alunos coexistem, mas é certo que, na hora de recrutar, as empresas “tendem a privilegiar um mestre, não só pelo investimento que fazem no acolhimento, mas também para não correrem o risco de perder o profissional, quando este se inscreve no mestrado”. “A maturidade é também um factor valorizado.”

Com Bolonha, os mestrados ganharam um “carácter profissionalizante, que passa pelo aprofundamento da formação nas áreas de Economia e Gestão ou por formações de especialização”, continua. Ligar o conhecimento à prática passou a ser fulcral. E isso implica não só “fortes competências técnicas, mas também comportamentais, essenciais à integração no mercado de trabalho”. José Varejão salienta que “o grupo mais restrito” de alunos que quer fazer um percurso na academia tende a apostar no doutoramento, “uma formação ao nível do terceiro ciclo de estudos, desenvolvendo competências para conduzir de forma autónoma actividades de investigação”. Também na FEP, que oferece vários cursos leccionados integralmente em inglês, há mais procura por parte de estrangeiros e alunos de outras licenciaturas, como Medicina, Direito, Engenharia ou Psicologia.

No ISCTE Business School, o aluno de mestrado tem, tipicamente, 21 ou 22 anos e quer dar continuidade aos seus estudos. “Neste momento, em termos de nacionalidades, temos estudantes provenientes de 45 países e a admissão de alunos estrangeiros tem crescido significativamente”, diz José Esperança, director da escola, que pertence à universidade ISCTE-IUL. Bolonha “conduziu a um ajustamento mais efectivo entre as universidades e as necessidades do mercado de trabalho, quer ao nível das carreiras académicas, quer das carreiras empresariais”, sustenta. E as dissertações de mestrado passaram a estar mais alinhadas às necessidades concretas das empresas e com foco na elaboração de planos de negócio, exemplifica.

Nos cursos mais tradicionais, como Direito, que sempre atraíram largas centenas de alunos, os mestrados também se moldaram ao novo contexto. Jorge Duarte Pinheiro, director da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), refere que a relevância destes programas “para o exercício de profissões jurídicas” passou a ser reconhecida pelo mercado, aliada à formação ao longo da vida. Ao mesmo tempo, difundiu-se “pela comunidade a ideia de que os mestrados não servem apenas os académicos, nem são apenas para os melhores alunos, sendo, pelo contrário, uma formação complementar, mais especializada, que deve ser feita”, declara.

Na FDUL, há dois tipos de mestrados: científicos e profissionalizantes. Cerca de 40% dos alunos inscrevem-se nos primeiros; 60% nos segundos. E também aqui cresce o interesse de estudantes oriundos de outras formações, como Economia, Relações Internacionais e Comunicação Social, sobretudo, nos cursos pós-graduados.

Tiago Neto, de 24 anos, está a frequentar o mestrado de Direito e Gestão na Faculdade de Direito da Católica porque sempre teve a certeza de que queria trabalhar “numa área mais económica”. O programa garante-lhe uma saída profissional e o contacto directo com professores que não são “puramente académicos”. “São advogados e toda a forma de dar a aula é diferente. Acompanham processos actuais, dão-nos um olhar sobre a realidade”, explica. Tiago Neto acredita que o raciocínio matemático “ajuda muito um advogado” e, para frequentar o mestrado, teve de fazer um curso intensivo de Finanças e Excel e ganhar competências na área da Gestão que a sua licenciatura não oferece.

Também Miguel Marques, de 22 anos, licenciado em Direito na Nova, dá por bem gastos os 14 mil euros do mestrado em Direito Law in a European and Global Context da Católica. “Temos professores que vêm das melhores faculdades do mundo, de Harvard ou de Oxford, os mais reconhecidos na área. E quando analisei a informação sobre o programa, isso incentivou-me. Nas aulas sentamo-nos em ‘U’ e falamos constantemente, debatemos ideias. É uma experiência muito boa”, descreve.

Na Escola de Direito da Universidade do Minho, Clara Calheiros explica o aumento da procura pelos mestrados (como continuação dos estudos universitários) com o facto de a licenciatura ter sido reduzida para quatro anos depois de Bolonha. Isto “impede que o licenciado possa especializar-se num domínio jurídico (que era possível nas licenciaturas com cinco anos), facto que se colmata com a frequência da parte curricular do mestrado”. Outro motivo é a exigência pelo Centro de Estudos Judiciários “de que os candidatos a ingressar nas magistraturas sejam detentores do grau de mestre”.

A presidente da Escola de Direito do Minho não critica o facto de os mestrados serem cada vez menos um passo para produzir investigação. “Significa que é preciso olhar para este programa de uma forma distinta. Continuam a existir trabalhos de elevada qualidade científica reconhecidos como tal”, garante. Ainda assim, a escola tentou não “desvirtuar” a matriz original destes programas e Clara Calheiros diz que as mudanças se deram mais no perfil dos alunos: na sua maioria, não têm pretensões de uma carreira académica.

Escolas-empresas?

A competição pelos melhores estudantes e pelos melhores professores trouxe desafios às instituições de ensino e, sobretudo, na área da gestão, é visível o investimento numa imagem cuidada, sites atractivos e em inglês, que mostram todas as vantagens da escola, desde a posição nos rankings internacionais ao estilo de vida que Portugal pode oferecer. A escassez de recursos, os cortes orçamentais - das famílias e das universidades - desafiou as instituições a procurarem ferramentas de divulgação que, até agora, não usavam. Multiplicaram-se parcerias com outras escolas estrangeiras, as visitas a países considerados “chave” e estreitaram-se relações com os antigos alunos, que são, afinal, os melhores embaixadores.

“A Faculdade de Economia do Porto tem desenvolvido desde há alguns anos um trabalho próximo com os alumni, com as empresas e os empregadores em geral, para perceber como servir melhor esses públicos”, diz José Varejão, director da FEP.

José Esperança, director da ISCTE Business School, sublinha que “o ensino universitário depende da existência de estudantes, pelo que a competição pela captação dos melhores alunos passou de uma dimensão local e nacional para a esfera internacional”. Mas comparar as escolas a empresas em busca do cliente é uma ideia que Clara Calheiros e Jorge Duarte Pinheiro rejeitam completamente. “As dificuldades podem ser estímulos de mudança e melhoria”, afirma a directora da Escola de Direito do Minho. Também o responsável da FDUL frisa que esta faculdade presta um serviço público “de elevada qualidade”.

Mas nem tudo são rosas: “As dificuldades na contratação de recursos humanos comprometem seriamente o relevo geracional na academia portuguesa”, avisa Clara Calheiros. E quem não conseguir dar o salto para o palco europeu e global nem atrair alunos e professores corre o risco de perder os melhores.

“A hierarquização da qualidade terá impactos diferentes. Há escolas locais que não têm visibilidade e que continuam com bons resultados e a sobreviver”, diz Francisco Veloso, da Católica Lisbon. “Quem tiver a melhor proposta, atrairá alunos de melhor qualidade”.     

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