Menina de 13 anos salvou os irmãos do fogo mas não conseguiu salvar-se

Criança estava sozinha com os quatro irmãos menores, quando o fogo começou, de madrugada, no Bairro do Zambujal, na Amadora. A casa estava repleta de roupa amontoada, papéis e embalagens de comida. Comissão de Protecção de Crianças e Jovens instaurou processo.

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Nas escadas, a caminho do segundo andar, mesmo horas depois de apagado o incêndio que começou durante a madrugada, o cheiro do fumo espesso entra pelo nariz, trava a respiração e agarra-se ao corpo. Os pés chapinham nos restos da água deixada pelos bombeiros na casa – agora enlameada pelos sapatos dos vizinhos e dos curiosos e misturada com uma ou outra beata. As paredes deste prédio no Bairro do Zambujal, na Amadora, parecem uma mina de carvão. Mas à porta do 2.º esquerdo ainda pendem decorações de Natal em forma de sino, chamuscadas pelo fogo que causou a morte de uma menina de 13 anos. Eram cerca das 3h30 e a criança estava sozinha em casa com mais quatro irmãos menores. Conseguiu retirá-los da habitação, voltou a subir as escadas, mas já só saiu nos braços dos bombeiros.

Os muretes rachados à frente do número 38 da Rua do Cerrado do Zambujeiro fazem as vezes de um banco para as dezenas de pessoas que aqui conversam sobre o incêndio que arrancou todos da cama ainda durante a madrugada e que já levou a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) do concelho da Amadora a instaurar um novo processo para protecção destas crianças que já tinham sido sinalizadas em 2009 por negligência. As entidades que acompanham o caso querem saber se se está perante uma situação de “negligência grave”. Além da vítima mortal, ao todo eram sete irmãos que foram entregues à família alargada.

O alerta para os bombeiros foi dado às 3h38 por Edgar Almeida, de 26 anos. Vive no 3.º esquerdo, precisamente o apartamento em cima daquele em que deflagraram as chamas, que ainda ninguém sabe explicar como e porquê surgiram. A Polícia Judiciária procura essas respostas.

Edgar e os pais aperceberam-se do incidente quando o fogo já alcançava as janelas do terceiro piso. No quarto dos pais, o mais afectado, os vidros estilhaçaram, uma televisão derreteu com o calor. Por isso, arriscam dizer que na casa de baixo tudo pode ter começado também na divisão principal. Conseguiram descer as escadas já envoltos num negrume tão profundo que não era sequer possível perceber se a porta do segundo andar estava aberta.

Edgar ainda tentou, em vão, atirar baldes de água e desligou o gás geral do prédio. “A PSP foi a primeira a chegar mas não os podem criticar, era impossível entrar ali”, assegura. De acordo com o Comando Distrital de Operações de Socorro de Lisboa, o incêndio, na freguesia de Alfragide, foi dominado às 4h14, entrando em fase de rescaldo minutos depois. Os trabalhos de socorro foram concluídos pelas 6h.

Entre os vizinhos dos vários prédios só há acordo sobre o número de crianças que estariam em casa de madrugada, mas não sabem bem quais seriam. Nesta casa, oficialmente, viveriam dez pessoas: um casal e oito filhos – pelo que as chamas fizeram nove desalojados. Porém, na prática, três das crianças, uma delas deficiente, vivem na casa da avó materna no mesmo bairro. À hora do incêndio estariam só cinco em casa. A menina que morreu era a mais velha dos oito irmãos, em que o mais pequeno tem cerca de seis meses. Nesta noite, o mais novo que estava em casa consigo teria cerca de três anos. A criança conseguiu ajudar os irmãos a sair mas, segundo os vizinhos, voltou atrás. Uns dizem que foi confirmar se não faltava mais nenhum, outros garantem que foi tentar salvar alguma coisa. Não se sabe.

Anabela e Ana estão revoltadas e com medo. Não querem dizer o apelido. Como quase todos. Chegam alguns familiares da vítima, que dizem vir procurar um cartão de cidadão entre os destroços. Uns vizinhos calam-se, outros dizem o que pensam de forma mais alta para serem ouvidos. “Os meninos estavam sozinhos a toda a hora, vinham para a rua brincar a altas horas, os pais não trabalhavam e andavam sempre por fora durante a noite. Se não fosse isto qualquer dia um caía de uma janela ou acontecia outra tragédia que eu nem sei”, resume Anabela, que diz que só a responsabilidade da irmã mais velha permitiu adiar este desfecho. “Era uma menina lindíssima e muito crescida. Era ela que levava os irmãos à escola e que tratava deles”, acrescenta.

Nesta noite fatídica, os pais terão chegado ao local já perto das 4h00 e seguiram para o Hospital Amadora-Sintra com a filha cujo óbito foi declarado mais tarde, já na unidade de saúde. Para trás deixaram um cenário de destruição. No patamar do segundo piso ainda resta um carrinho de bebé, um carro a pedais e um ou outro brinquedo que o fogo poupou. Mas, da porta para dentro, encontra-se um verdadeiro barril de pólvora. É difícil percorrer as divisões do T3 e reconhecer mobília. Apesar de muita coisa ter sido consumida pelo fogo, a desordem é evidente. A roupa acumula-se em montanhas, lado a lado com papéis publicitários e embalagens de comida. “Vinham aí assistentes sociais a toda a hora e nunca levaram os meninos porquê? Isto é jeito de alguém viver?”, questiona Ana, ao mesmo tempo que muitos curiosos aproveitam a ausência de forças policiais para espreitar o apartamento derretido pelo fogo.

Felicidade Nunes, de 73 anos, residente no bairro desde 1989, só despertou para a realidade desta família há cerca de sete meses. Está à frente da Associação A Partilha (Associação de Moradores do Bairro do Zambujal), que fundou há dez anos. “Conhecia as crianças, que vinham aliás pedir aqui iogurtes e comida várias vezes sozinhas ou para a roulotte que tinham ali atrás e onde a polícia os proibiu de dormir. Até fomos nós que ajudámos a fazer o enxoval do último bebé, fui eu que escolhi umas coisas para o pequenino, mas não sabia de tudo, só que tinham o rendimento social de inserção”, conta.

Só se apercebeu totalmente do contexto familiar quando recebeu um telefonema da escola destas crianças em busca de ajuda para “conseguir chegar a um contacto com os pais, pessoas muito difíceis e ausentes”. Felicidade é invadida por um misto de sentimentos. “No 2.º direito viviam até há 15 dias um casal de velhinhos que não aguentavam mais estar ali em frente e que se foram embora. Foi um milagre, ou também tinham morrido.” Ao mesmo tempo, recorda uma corrida para crianças, organizada por uma grande empresa ainda neste mês, e na qual conseguiu que participassem vários meninos do bairro, onde se incluem três irmãos da menina que morreu. Em teoria, a criança de 13 anos também aderiu a esta actividade, mas a responsável da associação de moradores não a encontra na lista do dossier meticulosamente arrumado num armário. Opta por recordá-la em fotografias das várias actividades que conseguiu organizar e que colecciona no espaço decorado por bandeiras das várias nacionalidades que vivem no Zambujal.

O bairro é "terra de ninguém"
No que diz respeito às autoridades, foi com a sinalização de 2009 que a CPCJ do concelho da Amadora iniciou uma intervenção junto destas crianças mas não a prosseguiu porque a meio do processo, inicialmente aceite, foi retirado o consentimento dos pais. Eventualmente, os pais não concordaram com “alguma das propostas” de intervenção e acompanhamento da comissão, disse ao PÚBLICO a presidente da CPCJ da Amadora, Joana Fonseca.

Nesse mesmo ano, a CPCJ ficou impossibilitada de acompanhar o caso, por não ter consentimento dos pais, e como prevê a lei, o dossier foi então remetido ao Ministério Público onde as crianças “terão sido acompanhadas”, diz Joana Fonseca. “Quando há incumprimento, e se mantém a situação de perigo, o Ministério Público instaura um processo de protecção judicial”. A situação é, normalmente, avaliada por “uma equipa multidisciplinar” que acompanha as crianças. Neste caso, num momento posterior, os processos “terão sido arquivados” no Tribunal de Família da Amadora. O PÚBLICO está a tentar saber, junto das entidades judiciais, quais os motivos na base da decisão de arquivamento.

Felicidade espera que este caso sirva para voltar a colocar os olhos no Bairro do Zambujal, “conhecido como a terra de ninguém”. “Temos aqui uns 4000 habitantes, pode-se dizer que é um bairro multicultural, na maioria ciganos, depois africanos e por fim caucasianos. Houve alturas em que as coisas melhoraram, mas agora temos de novo guerras de cães, tiros, conflitos. É uma terra de ninguém, como era conhecido antigamente”. Porquê? “Ora, estas situações fazem com que ninguém queira pertencer aqui, que ninguém seja daqui. Mesmo assim os táxis já aqui entram, quando vim para cá nem isso, só se fossem escoltados pela polícia”.

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