Maior cooperação entre Estados tornará "mais eficaz" combate ao tráfico de seres humanos

Especialistas e responsáveis da área da Investigação Criminal reunidos em Lisboa deixaram recomendações para a luta do tráfico de pessoas nos países da CPLP.

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Desde 2008, foram identificados quase 21 milhões de vítimas de tráfico de seres humanos em todo o mundo Helena Colaço Salazar

Numa investigação judicial a crimes que cruzam fronteiras, como é o tráfico de pessoas, a troca de informações entre as polícias dos vários países e a protecção especial de testemunhas foram dois dos aspectos mais apontados pelos oradores de uma reunião organizada esta sexta-feira no Campus da Justiça, em Lisboa, no âmbito da Conferência dos Ministros da Justiça dos Países de Língua Oficial Portuguesa, aberta à imprensa e ao público.

Só com uma maior cooperação policial e judicial reforçada se poderá reduzir de “forma eficaz” a actividade das associações criminosas, responsáveis por tráfico de pessoas (para exploração sexual ou laboral), defendeu o procurador da República João Melo no encontro Desafios do Combate ao Tráfico de Seres Humanos no Espaço da CPLP. Também o director nacional-adjunto dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, José van der Kellen, lembrou que “o grande desafio dos Estados lusófonos” é no sentido de “um maior esforço para a cooperação policial e a harmonização” da legislação e assim esbater diferenças que possam tornar um país mais facilmente penetrável aos olhos das organizações criminosas.

O inspector deu o exemplo da cooperação recente entre Portugal e Angola que permitiu “conter o fenómeno grave” da vinda de crianças e jovens para Portugal, que começou a notar-se no início de 2014. “As detenções feitas em Angola acabaram com este tipo de pressão em Portugal”, afirmou o responsável, que acredita que o tráfico de crianças vindas deste país lusófono está controlado.

Seja a partir da costa ocidental de África, com a pressão que representa o crime organizado da Nigéria, seja com a pressão da imigração da América do Sul ou dos países que fazem fronteira com os Estados da CPLP, Portugal surge, na mente dos chefes das redes criminosas, como uma favorável porta de entrada para outros países. Entre as rotas alternativas também começam a surgir as que ligam o Médio Oriente a Portugal, via Norte de África.

Com os voos directos, a fácil ligação aos restantes países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) esbate fronteiras, disse José van der Kellen na sua intervenção. Ao PÚBLICO, o inspector lembrou como a ligação aérea entre Bissau e Lisboa permitiu a uma rede nigeriana estabelecer-se em Portugal e trazer dezenas de menores de idade e mulheres para o espaço europeu durante pelo menos seis meses, até serem suspensos os voos, em Dezembro do ano passado, quando a TAP foi forçada a embarcar 74 pessoas com documentos falsos.

Essa suspensão permitiu conter a operacionalidade desta rede, cujos cabecilhas (cinco ou seis) beneficiavam dos apoios sociais da Segurança Social normalmente concedidos em casos de asilo político, acrescentou. “Esta lógica é multiplicada a partir de Portugal para outros Estados", alertou. "As máfias nigerianas conseguem ter dinheiro em caixa a partir das estruturas dos Estados. Esses apoios ajudam a manipular as vítimas” que conseguem entrar em território nacional, alertou, dando ênfase à necessidade de uma melhor cooperação entre países e protecção das vítimas para que estas possam contribuir para a investigação sem que mais tarde possam vir a sofrer represálias.

A importância das condenações
Portugal surge mais como “destino das vítimas” ou passagem, e não tanto como país de origem, afirmou o procurador da República João Melo, que realçou o aspecto dissuasor de condenações importantes recentes, como as relativas ao maior processo de escravatura em Portugal, conhecidas na semana passada: 13 condenados por “crimes de escravidão” a penas entre os cinco anos e meio e os 12 anos, ao fim de um ano de julgamento e de dez de inquérito.

A condenação, com penas pesadas, de responsáveis “pode ser extremamente importante para afastar para outro espaço geográfico” as grandes redes, corroborou José van der Kellen. “Temos de trabalhar conjuntamente”, disse, referindo-se aos outros países da CPLP. A verdade, enfatizou, é que a facilidade com que se viaja entre países lusófonos e se comunica num mundo globalizado, com as novas tecnologias, facilita em muito a acção das redes criminosas.

As respostas devem permitir evitar que seja “mais fácil apanhar aqueles que não são os cabecilhas e, com isso, fazer um brilharete”, como acontece, sem que se resolva o problema de fundo, considerou João Melo. O procurador lembrou que o Código do Processo Penal em Portugal já integra o tráfico de seres humanos no conceito de criminalidade altamente organizada. Essa alteração foi aprovada para permitir abrir o leque das medidas possíveis de investigação, como a admissibilidade de escutas telefónicas e acções encobertas, as medidas especiais de protecção de testemunhas, a possibilidade de prisão preventiva e alargamento do seu prazo máximo, na investigação deste crime, entre muitas outras.

“A escravatura continua no tempo presente”, afirmou João Melo, reforçando que esta era “uma realidade criminal” que “não terá diminuído nos últimos anos”. Desde 2008, foram identificados quase 21 milhões de vítimas de tráfico de seres humanos em todo o mundo, tendo quase metade (9528) sido identificadas na União Europeia.

Estes números representam apenas a parte ínfima (entre 1% e 10%) da realidade que é conhecida, segundo os dados apresentados pelo inspector-chefe da Polícia Judiciária Vítor Matos, que também focou a necessidade de proteger melhor as vítimas de tráfico. O retrato que traçou, com base em dados estatísticos, apresenta o tráfico de pessoas como a segunda maior fonte de lucros ilícitos de todo o crime. Dos 1603 arguidos acusados em 2010 nos países da União Europeia, 1339 foram condenados.

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