Médicos devem avisar companheiros de seropositivos do risco de contágio, se os doentes não o fizerem

Direito à protecção da saúde e da vida sobrepõe-se ao dever de sigilo médico, volta a afirmar a Ordem dos Médicos num parecer sobre um caso que envolve um casal de namorados adolescentes.

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Para a Ordem dos Médicos, “o valor fundamental” é a preservação da saúde e da vida Reuters

Se uma pessoa infectada com VIH/sida, apesar de instada pelo médico, decidir não avisar o companheiro do risco de contágio que este corre ao manter relações sexuais desprotegidas, o profissional de saúde tem o direito de o alertar para o perigo de transmissão do vírus. O problema já é antigo, deu até origem a um parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) há 13 anos, mas ainda há médicos que continuam com dúvidas sobre esta matéria.

Foi o que aconteceu com uma médica de família que pediu recentemente um esclarecimento à Ordem dos Médicos (OM) quando uma sua doente – uma adolescente de 17 anos, grávida e seropositiva – se recusou a informar o namorado do risco de transmissão de VIH/sida. A médica tentou persuadi-la a avisar o namorado, com quem a adolescente admitiu que continuava a manter relações sexuais não-protegidas, mas a jovem persistiu na sua posição e disse que não tencionava informá-lo da situação.

A adolescente foi infectada por transmissão vertical (através da mãe, quando esta estava grávida) e está a ser seguida em consulta hospitalar e a ser tratada com medicamentos anti-retrovirais.

O caso é relatado na última edição da revista da OM, que inclui o parecer do consultor jurídico Paulo Sancho. Sublinhando que se trata de uma situação “excepcional”, o jurista defende que a médica pode avisar o namorado da situação clínica da doente, mas só depois de comunicar à paciente que o vai fazer. A médica não necessita sequer de autorização expressa do bastonário da OM, frisa.

“Situação excepcional”
Ao abrigo do artigo 89.º do Código Deontológico da Ordem, “a obrigação de segredo médico não impede que o médico tome as precauções necessárias, promova ou participe em medidas de defesa da saúde, indispensáveis à salvaguarda da vida e saúde de pessoas que possam contactar com o doente, nomeadamente membros da família e outros conviventes”, justifica.

Sendo a preservação da saúde e da vida “o valor fundamental”, acrescenta, o médico deve, mesmo assim, tentar primeiro persuadir o doente a modificar o seu comportamento. “Só depois poderá revelar a situação às pessoas interessadas”, avisando o paciente que o vai fazer. Na prática, explicou Paulo Sancho ao PÚBLICO, trata-se de uma “situação excepcional” que justifica “a exclusão do dever de sigilo e que não implica uma escusa formal” por parte do bastonário da OM.

“Esta é uma das situações em que é consensual aceitar-se que o sigilo médico pode ser quebrado”, sintetizou o presidente do CNECV, Miguel Oliveira e Silva, sublinhando que estes casos são discutidos “em aulas de ética médica” desde há muitos anos. Esta doutrina é, de facto, defendida desde 2000 por Paulo Sancho – que fez então um parecer sobre a matéria, depois enviado para apreciação no Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. 

Relatando o caso específico de um doente em tratamento num centro de atendimento a toxicodependentes – um paciente seropositivo e que, apesar de instado, nunca informou a mulher da sua situação e continuava a manter relações sexuais não-protegidas –, o CNECV defendeu que este tipo de situação não pressupõe a quebra de sigilo médico.

Neste “conflito entre dois deveres”, o da defesa da privacidade e o da protecção da saúde e vida da mulher do doente e eventuais filhos do casal, refere o parecer, o médico deve “continuar a envidar todos os esforços para rapidamente persuadir o doente da obrigação grave de comunicar à mulher a seropositividade e risco de transmissão”. Se não o fizer, porém, o médico deve informá-lo de que irá cumprir a sua obrigação de comunicação da seropositividade e riscos de transmissão, o que “não pressupõe, neste caso, quebra de sigilo médico”. Esta comunicação, conclui o parecer, “é indispensável para que a mulher possa fazer testes de diagnóstico e iniciar tratamento, caso já tenha sido infectada”.
 

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