Médico do S. João acusado de homicídio por negligência em ensaio clínico vai ser julgado

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Doente morreu durante tratamento para artrite reumatóide Paulo Ricca (arquivo)

Tribunal de Instrução Criminal do Porto decidiu pronunciar clínico por não ter interrompido tratamento após queixas da paciente.

Seis anos após a morte de uma doente durante um ensaio clínico com um tratamento inovador para a artrite reumatóide no Hospital de S. João, o Tribunal de Instrução Criminal do Porto (TIC) decidiu pronunciar o médico que conduziu o tratamento, que agora vai ser julgado por homicídio por negligência grosseira.

Conhecido por ser o primeiro caso de uma morte na sequência de um ensaio clínico a chegar à Justiça portuguesa, o processo tem-se arrastado desde que o filho da doente, Fernando Moreira, decidiu denunciar o caso publicamente. Felícia Moreira morreu em Fevereiro de 2004 com uma tuberculose seguida de infecção generalizada, depois de ter iniciado em Junho de 2003 o tratamento com uma substância à data inovadora, o adalimumab (de nome comercial Humira), produzido pelo laboratório Abbot. Tinha 59 anos.

Segundo o Jornal de Notícias, que ontem divulgou a notícia, o médico foi pronunciado pelo TIC do Porto por ter ignorado as sucessivas queixas da doente e não ter suspendido a tempo o ensaio clínico. A pronúncia segue, aliás, a tese da acusação do Ministério Público (MP), que no final de 2007 concluía já que o reumatologista deveria ser julgado por homicídio por negligência grosseira. Apesar de ter pedido a abertura da instrução, após a audição de vários peritos, acabou por ver a acusação inicial confirmada.

Professor da Faculdade de Medicina do Porto, o médico interpôs também, entretanto, uma acção por difamação contra Fernando Moreira, que iniciou uma autêntica cruzada na Internet, onde chegou a criar uma página para relatar a trágica história da mãe. Resultado: há cerca de três meses, foi condenado a pagar uma indemnização de quatro mil euros ao reumatologista porque escreveu na Net que os ensaios clínicos eram então "um mundo de amadorismo" e considerar que o clínico tinha mentido. "Fiquei a perceber que o conceito de difamação é mais importante do que o de vida ou de morte", comenta, agastado. Foi em Junho de 2003 que Felícia começou o tratamento com o Humira. Em Outubro começou a sentir-se mal, mas o médico diagnosticou-lhe uma mera infecção urinária, conta Fernando. Ela ainda tomou uma última dose do medicamento no início de Dezembro e, depois de ser assistida em várias unidades de saúde de Guimarães, foi internada nos cuidados intensivos do Hospital de S. João, onde acabou por morrer.

O economista queixou-se contra toda a equipa médica que colaborou no ensaio clínico e ainda contra dois responsáveis do laboratório Abbot, mas o Departamento de Investigação e Acção Penal do MP decidiu acusar apenas o médico que conduziu o ensaio, por não o ter interrompido a tempo.

Em Maio de 2005, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde instaurou também um processo disciplinar ao reumatologista, por considerar que a comunicação das possíveis reacções adversas à doente não terá sido a mais transparente. A IGAS defendeu igualmente que o ensaio devia ter sido suspenso quando surgiram os primeiros problemas, em Outubro de 2003.

Fernando não desistiu ainda de obter uma indemnização da Abbot, que, segundo afirma, se propôs então accionar o seguro do ensaio, pagando uma quantia que podia chegar a um milhão de dólares. Para já, sente pelo menos que obteve uma vitória: o folheto informativo do medicamento (que começou a ser vendido nas farmácias) não referia o risco de infecções graves na Europa, ao contrário do que sucedia nos Estados Unidos; foi logo alterado e completado.

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