Medicamento português para o pé diabético vai ser testado nos Estados Unidos

Empresa portuguesa Technophage recebeu autorização para começar os primeiros testes em humanos. "Cocktail de vírus" destrói as bactérias presentes nas lesões que levam a amputações.

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O risco de diabetes é mais de quatro vezes superior no grupo sem formação

A solução para os casos de pé diabético resistente aos antibióticos está nas mãos da Technophage, uma empresa portuguesa de biotecnologia que está a investigar um novo fármaco para esta doença e que acaba de receber autorização dos Estados Unidos para avançar para os primeiros ensaios clínicos em humanos naquele país. O TP_102, nome de código do fármaco que recupera um tratamento que já era utilizado na Europa de Leste na década de 1950, torna-se assim no primeiro medicamento biológico português a receber luz-verde por parte do regulador norte-americano, a Food and Drug Administration.

O director executivo da Technophage, Miguel Garcia, explicou ao PÚBLICO que o medicamento inovador, que começou a ser desenvolvido em 2005 aquando do nascimento da empresa, em parceria com a farmacêutica portuguesa Tecnifar, tem como base um “cocktail de bacteriófagos”, isto é, um conjunto de vírus capazes de infectar as bactérias presentes no chamado pé diabético e que provocam úlceras que podem levar à necessidade de amputar os membros inferiores. Na categoria dos medicamentos biológicos, o TP_102 é o primeiro de origem portuguesa a chegar a esta fase de ensaios clínicos nos Estados Unidos, que até agora só tinham deixado avançar medicamentos químicos, isto é, que não têm como base matéria viva.

A prevalência da diabetes em Portugal é de cerca de 13% e estas infecções que resultam de complicações atingem quase 25% dos doentes, que ficam com um risco de amputação 15 a 30 vezes superior ao de uma pessoa sem a patologia. Todos os anos são feitas quase 1500 amputações relacionadas com o pé diabético. Apesar de nos últimos anos se ter conseguido reduzir o número de casos com a aposta nos cuidados de saúde primários, os dados mais recentes apontam para um revés: o relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde destacou, no final de Junho, que houve uma inversão nas estatísticas desta doença, com os especialistas a reportarem em 2012 um aumento das amputações de membros inferiores, que cresceram 8,9% depois de estarem sempre a descer desde 2008.

Sobre o funcionamento do medicamento em investigação, Miguel Garcia adiantou que os “bacteriófagos são entidades que eliminam especificamente as bactérias”. “O nosso objectivo é combater as resistências bacterianas que existem aos antibióticos e percebemos que este produto as elimina e dá resposta a um problema médico não resolvido e que é um problema real, já que muitas infecções de pé diabético evoluem para amputação, levando mesmo por vezes à morte”, disse. O também investigador adiantou, ainda, que estes vírus “infectam directa e especificamente as bactérias hospedeiras, replicando-se dentro da própria bactéria e rebentando-a quando sai para o ambiente”. O ciclo repete-se até já não existirem bactérias.

Até agora a Technophage esteve a trabalhar nos modelos in vitro e em animais, que comprovaram a segurança e eficácia do medicamento. De tal forma que os ensaios de fase I em humanos, autorizados pela Food and Drug Administration, poderão ser feitos já em pessoas doentes, nas quais a solução líquida será aplicada directamente nas feridas, em vez de se ter de testar primeiro em voluntários saudáveis.

Miguel Garcia ainda não tem prazos definidos, estando a ultimar os protocolos e a ver se há necessidade de juntarem mais parceiros ao projecto que vai decorrer nos Estados Unidos por questões de protocolo. Até agora os ensaios foram em Portugal. O responsável acredita que o novo ensaio deverá contar com uma amostra de doentes “na casa das dezenas ou das centenas”. Quanto à chegada do TP_102 ao mercado, é prudente e admite que, mesmo se correr tudo dentro do previsto, não deve demorar menos de seis anos. “Por ser uma patologia não resolvida e com forte necessidade de medicação esperamos que o processo possa ser mais rápido”, explicou, adiantando que não excluem a hipótese de em fases mais avançadas venderem o produto a uma grande farmacêutica.

Por o TP_102 ser um medicamento biológico, ou seja, produzido a partir de matéria viva, Miguel Garcia já estava confiante de que seria seguro e pouco tóxico. Além disso, contou que “já foram utilizadas soluções semelhantes na Europa de Leste há algumas décadas, como a de 1950, 1960 e até 1980, mas sem o controlo do ponto de vista regulamentar pelo que os dados não podem ser usados, mas conferem uma enorme expectativa de segurança e de eficácia desta terapia como alternativa para as bactérias resistentes aos antibióticos”.

A empresa, que funciona nas instalações do Instituto de Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, tem várias parcerias com a academia, mas também com outros países como a Holanda e a China. No total, a Technophage está a trabalhar em mais 11 projectos, sendo que os que estão em fases mais avançadas são na área da artrite reumatóide, osteoporose e doença de Parkinson.

Diabetes com 10% da despesa em saúde
A investigação da Technophage surge num país com dados preocupantes na área da diabetes. No total, estima-se que a doença tire, em média, sete anos de vida às pessoas com menos de 70 anos, e que represente 10% da despesa total em saúde em Portugal, com um custo directo que chega perto dos 1500 milhões de euros. Os dados apontam para que existam quase 500 mil pessoas sem saberem que têm a doença e perante a obesidade e o sedentarismo a tendência é para que os números piorem.

O último relatório do Observatório Nacional da Diabetes, publicado no final de 2013, dizia que por dia morram 13 pessoas por diabetes em Portugal, com um total de 4867 mortes registadas em 2012, mais 331 do que em 2011. Só na faixa etária dos 60 aos 79 anos a prevalência já chega aos 27%, quando dos 20 aos 39 anos o valor se fica pelos 2%. O problema é que esta doença acaba por ter repercussões em todo o organismo, o que se reflecte em patologias como as cardiovasculares: quase 28% das pessoas que tiveram um AVC tinham também diabetes, um número que sobe para os 31% no caso do enfarte agudo do miocárdio. Entre os doentes que fazem hemodiálise, a percentagem de diabéticos também está nos 28%.

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