MEC “sabe” que escolas inflacionam as notas e é à tutela que compete encontrar o “antídoto”

O presidente do CNE ressalva que a maioria das escolas não segue esta prática, mas os dados que permitiram estas conclusões vieram da tutela. "A título pessoal", questionou a substituição do modelo de contratação pelas próprias escolas por uma contratação centralizada e defendeu que, para “abusos”, há “processos disciplinares” e “tribunais”.

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“Não há educação em comprimidos”, diz David Justino Rui GaudÊncio

O presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), David Justino, afirmou nesta segunda-feira que não é obrigação deste órgão consultivo denunciar à tutela as escolas que inflacionam notas, até porque os dados que permitiram detectar o problema foram fornecidos pelo próprio ministério. Apesar de ressalvar que na maioria das escolas esta prática de inflacionar as notas não acontece e que “é um fenómeno estável desde 2000”, o antigo ministro da Educação considera, ainda assim, que há motivos de preocupação: “Temos de nos preocupar com aqueles que, não sendo a maioria, dão cabo da maioria.”

David Justino comentava, em conferência de imprensa, o último relatório produzido por este órgão consultivo da Assembleia da República e do Governo, divulgado na semana passada. O ex-ministro da Educação salientou que a tutela “sabe o que se passa”, porque os dados foram fornecidos ao CNE pelo júri nacional de exames.

David Justino defende que quem tem de encontrar o “antídoto” para o problema é o MEC e que não é “obrigação” do CNE fazer queixas à tutela sobre os casos detectados. Ainda que as situações aconteçam tanto no público, como no privado, “há escolas que são reconhecidas por isso”, afirmou David Justino. E acrescentou: “Tive a oportunidade de falar já há uns tempos com o secretário de Estado da Educação, que me disse que estava a acompanhar e que estavam a tentar encontrar soluções para isso.”

Em resposta ao relatório do CNE, o MEC enviou no fim-de-semana um comunicado no qual considerava “natural” o diferencial entre as notas internas (que avaliam o trabalho de todo o ano lectivo) e as notas dos exames, sublinhando que estão a ser avaliadas componentes de trabalho diferentes. No comunicado, garantiu a intervenção da Inspecção-Geral de Educação e Ciência, "caso seja participada, fundamentadamente, alguma situação concreta" de "manipulação concertada de resultados escolares".

David Justino defendeu que não é competência do CNE arranjar soluções, declarando não ter intenção de se “imiscuir nas competências do MEC”, mas reconheceu que a solução mais fácil para contornar esta prática passaria por equilibrar o peso das notas internas com o peso das notas dos exames no acesso ao ensino superior. “Não é por acaso que as dispersões são maiores no ensino secundário”, afirmou, particularizando ainda os maiores diferenciais em disciplinas críticas, como Biologia, no acesso a cursos como Medicina, no qual a entrada ou a exclusão se define nas casas decimais.

O ex-ministro da Educação defendeu que é preciso introduzir “justiça e equidade” nos exames, que são uma forma de “avaliação complementar”, que não avalia “o potencial” de um aluno para seguir determinado curso, mas que, comparados com a avaliação interna, têm uma “qualidade de avaliação” que se superioriza. Se os exames não forem credíveis, “é o próprio sistema de acesso ao ensino superior que deixa de ter credibilidade, porque não é justo”. Sobre a possibilidade de os exames de acesso passarem a ser responsabilidade das instituições de ensino superior, lembrou que universidades e politécnicos nunca estiveram disponíveis para assumir essa responsabilidade.

"Não dou cabo do sistema"
Sobre a polémica que tem marcado o arranque deste ano lectivo, o erro detectado na ordenação dos docentes sem vínculo na Bolsa de Contratação de Escola (BCE), David Justino sublinhou que não foi a “subjectividade” dos indicadores escolhidos pelas escolas que falhou no processo, mas sim a aplicação da lei, no que toca à ponderação dos diferentes critérios em causa.

A BCE substituiu, a partir deste ano, as ofertas de escola – que permitiam às "escolas TEIP" (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária) ou com contratos de autonomia a contratação directa de professores para suprir necessidades temporárias.

"A título pessoal", questionou  a substituição do modelo de contratação pelas próprias escolas por uma bolsa de contratação centralizada (como foi este ano) e defendeu que, para casos de “abusos” há “processos disciplinares” e “tribunais”. “Não é pelo facto de haver dois, três, quatro, cinco casos de abuso relativamente à contratação, de menor transparência, que vou acabar com a contratação de mil ou dois mil, porque se há falta de transparência, ou se há ilicitude, deve-se penalizar quem a fez, não dou cabo do sistema. Para isso existem processos disciplinares, tribunais. Não vamos agora substituir-nos a isso”, defendeu Justino, para quem “o objetivo era acabar com o modelo”.

Admitiu que a contratualização centralizada agora adoptada pelo MEC “tem vantagens em alguns aspectos”, se for "complementada com outras formas de contratação de necessidades eventuais, que sejam mais ágeis, mais adaptáveis à situação, e com maior capacidade de resposta em menos tempo", mas “não há nenhuma contratualização centralizada que consiga resolver o problema”.

“Sabemos também que geralmente as organizações sindicais têm uma concepção do que devem ser as formas de contratação, centralizada, nacional, em que a lista de ordenação impera sobre tudo. Eu, pessoalmente, considero que para além da lista de ordenação, que deve ser respeitada, devemos ter cuidado relativamente às formas e critérios de ordenação. Agora não me compete a mim encontrar essas soluções”, declarou.

Super professores
O relatório também questiona o modelo de recrutamento e selecção dos professores. Para David Justino, o facto de, no actual sistema, contar a média de curso dos alunos, também faz com que algumas instituições de ensino superior “sistematicamente” inflacionem as notas dos alunos para poderem estar em melhor posição de se candidatarem a um lugar de professor. E usou alguma ironia para dizer que, em “alguns” cursos, os estudantes entram com notas “mais baixas” e saem “com notas mais altas”, pelo que deve haver “alguma solução mágica” para os “transformar” em “super professores”. Por outro lado, alertou, os alunos que queiram ser docentes poderão não escolher instituições mais exigentes para não serem “prejudicados” no acesso à profissão.

O presidente do CNE escusou-se, porém, a adiantar que tipo de modelo defende em concreto e também a enumerar de que instituições de ensino superior está a falar. Mas adiantou que este órgão consultivo criou uma comissão especializada para analisar a “condição docente” e que “se for necessário e urgente” fará recomendações ao MEC. A única proposta do CNE passa pela regulamentação do chamado período probatório, já previsto no Estatuto da Carreira Docente. “Não é preciso criar novas leis”, defendeu.

O CNE vai, garantiu, continuar a debruçar-se sobre o problema e tentará “identificar as notas médias de cada escola” para poder tirar mais conclusões. David Justino entende que “tem de haver mecanismos que possam aferir essas avaliações” e que a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior não é suficiente. O ex-ministro da Educação lamentou também que o ensino público não tenha a “ousadia” de escolher os melhores professores, como no privado: “O Estado tem o dever de escolher os melhores.”

Comprimidos
O presidente do CNE também defendeu que não há soluções mágicas para resolver alguns problemas identificados no último relatório deste órgão, como as elevadas taxas de retenção. “Não há educação em comprimidos”, disse, mostrando-se preocupado com o facto de, no sistema de ensino, um em cada três alunos já ter reprovado pelo menos uma vez.

Mesmo admitindo que em alguns casos possa ser uma “medida correctiva", David Justino lamentou que continue a existir no país uma “cultura generalizada de retenção”, ou seja, que a sociedade considere que pode ser “bom” para o aluno reprovar. Para o ex-ministro da Educação, “a escola não se fez para chumbar”, mas “para promover o sucesso”. E frisou que, como para um aluno que chumbe, a possibilidade “de cair em exclusão é elevadíssima”, o deve ser feito é dar mais atenção aos estudantes com dificuldades: “Pegarmos num aluno e não o largarmos, não o deixarmos para trás. Dá mais trabalho, mas também mais retorno para a sociedade.”

Sobre o aumento das retenções registado, disse só haver duas hipóteses. Uma pode estar relacionada com facto de as escolas estarem a chumbar os alunos de forma a não permitirem que vão a exame, para não estragarem a média do estabelecimento de ensino: “Temo que a prática ganhe projecção, mas espero que não aconteça.” A outra pode relacionar-se com “o agravamento das condições” socioeconómicas das famílias nos últimos três anos. A solução do problema das retenções diz respeito a “todos”, pais, alunos, professores, defendeu.

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