Marta e Gonçalo: o casal de bata e de bota que partiu para voltar

Foto
Miguel Manso

Marta Oliveira e Gonçalo Santos são um casal de biólogos. Ela bióloga de bata. Ele biólogo de botas. Traduzindo para leigos: Marta investiga em laboratório, enquanto Gonçalo faz trabalho de campo. Há cerca de dois anos e meio, resolveram investir num mestrado na Suécia. Ao contrário da maioria dos que partem, este casal decidiu voltar.

Conheceram-se no primeiro ano do curso de Biologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Começaram a namorar no segundo ano. A vontade de seguir o campo da investigação tornou o mestrado uma obrigação. Restava saber no quê, onde e como.

“Normalmente, os prazos de candidatura sobrepõem-se aos exames da licenciatura e não estão reunidas as condições ideais para analisar todos os parâmetros. São processos complexos que envolvem muitas dimensões”, alerta o investigador. Por isso, e para se poderem organizar, pararam um ano. Durante esse período, viajaram e investiram na experiência profissional através de estágios e voluntariado em projectos não remunerados. Algo que foi possível graças ao apoio da família.

Chegaram a ponderar fazer mestrado em Portugal, mas “pesou a necessidade de apostar na internacionalização e na mobilidade para consolidar uma carreira científica, não só do ponto de vista da educação, mas também da experiência”, explica Gonçalo. A Universidade de Uppsala, a mais antiga da Suécia (e de toda a Escandinávia), foi a escolha.

Marta descreve o processo de selecção. O primeiro ponto que destaca é o facto de a educação ser gratuita. Situada a cerca de 70 quilómetros a norte de Estocolmo, Uppsala é conhecida por ser uma cidade universitária “muito forte em ciência, investigação e engenharias” e por isso um pólo atractivo, conta.

No top 500 das melhores universidades categorizado pelo Ranking Académico Universitário de Shangai, a Universidade de Uppsala surge em 60.º lugar. Gonçalo acrescenta: “O filtro não é difícil. Se formos ver as melhores universidades na Europa e excluirmos todas as do Reino Unido, devido ao preço das propinas, restam as universidades nórdicas.” Marta aponta ainda a influência da experiência de alguns amigos e o peso da língua inglesa no país, o que lhes facilitou a integração.

Enquanto Marta apostou na variante de desenvolvimento, Gonçalo investiu na conservação. Mas a escolha de Uppsala foi feita a pensar num investimento para os dois. Marta manteve-se na instituição durante todo o seu mestrado. Já Gonçalo optou por fazer a tese em Portugal, como aluno externo.

Sobre o nível de preparação que levaram de Portugal, afirmam-se “positivamente surpreendidos”. Não obstante, notaram algumas disparidades “no exercício de desafiar, ser crítico, de sozinho pôr as coisas em questão”. Um hábito que Gonçalo não sentiu tão impregnado em Portugal. “Foi onde notei que divergimos mais”, afirma Gonçalo.  Marta concorda, acrescentando que o estudo em Portugal se centra “numa temática muito teórica”. Na Suécia, para além de existirem mais oportunidades, têm mais flexibilidade, mais experiências práticas, trabalha-se mais em conjunto e os alunos são levados mais a sério.

Sistemas diferentes

A bióloga elogia a plasticidade da estrutura do seu mestrado. “Foi muito flexível. Moldei-o ao meu gosto. Foi muito rotativo, com temas diferentes, o que permite uma grande experimentação com diferentes projectos de investigação do grupo.”

Ao contrário do que imaginaram, no regresso, Marta e Gonçalo perceberam que o seu investimento num mestrado internacional lhes poderia ter fechado algumas portas. “O sistema de avaliação nórdico é muito diferente. Avalia de uma forma qualitativa e não quantitativa”, conta a investigadora. Na Universidade de Uppsala, o sistema avalia se os objectivos do programa foram ou não concluídos, não os quantificando. “Chegámos a um exagero em que a parte quantitativa tem mais importância do que a qualitativa, que é completamente desconsiderada. E como não tínhamos uma média para apresentar, não nos conseguíamos candidatar a projectos”, descreve Gonçalo.

Gonçalo chegou a ser aconselhado a pedir uma equivalência a um outro mestrado numa instituição portuguesa, perdendo todo o seu investimento pessoal numa instituição bem classificada em rankings mundiais e ainda 900 euros, que seriam necessários para o processo. Um cenário que não se concretizou.

Numa reflexão a posteriori, confessam ter mudado algumas concepções sobre a experiência de ir para fora e o que se deve considerar no momento de selecção. Gonçalo aconselha a ver o mestrado não só pelo programa curricular, mas pelo grupo de investigação: “Não damos a importância que devemos dar a toda essa rede de contactos.”

 “É importante ver o que está por detrás do mestrado. Procurar que grupos fazem coisas, pensar a longo prazo e envolver o desenvolvimento da tese”, explica Marta. São os professores que vão dar acesso ou valor curricular para prosseguir com mais candidaturas, ou escrever uma carta de recomendação. São factores que não são apresentados de imediato, que exigem uma maior pesquisa e que se reflectiram nas discrepâncias da sua experiência individual.

Por oposição ao que sentiram quando ainda estudavam em Portugal, na Suécia “existe uma consciência de manter as pessoas que interessam”, diz Gonçalo. “Os critérios nem sempre são claros, mas o interesse e consciência em manter as pessoas é transversal.” Já em Portugal, “há quem se perca pelo caminho”, embora o mestrado em ciência, pelo menos, já faça “uma filtragem”. Uma das razões apontadas pelos dois investigadores é a falta de acompanhamento das instituições.

Falta de apoio

Em conversa com professores portugueses sobre as diferenças entre o sistema de ensino português e os sistemas de ensino no estrangeiro, Gonçalo destaca a dificuldade de dar experiências extracurriculares aos alunos. “Os professores têm essa vontade, os alunos têm essa vontade, o problema está nas dinâmicas institucionais. Em ciências trabalha tudo muito à base de bolsas. E estando em crise, todo o sistema fica todo deturpado, cheio de entropia.” E exemplifica: “Para colocar um aluno a ajudar num projecto durante um mês, aqui, em Portugal, é preciso abrir uma bolsa, com um investimento, com uma acta, e deve existir um concurso aberto durante um determinado período.”

“A escolha do mestrado é uma coisa muito independente e nesse sentido acaba por se perder muita gente. Com um maior acompanhamento das instituições conseguiríamos manter mais pessoas. Mesmo que as condições não fossem ideais”, acredita.

Existe um rótulo evidente. “Sabe-se que as coisas em Portugal estão difíceis e teme-se que, se ficarmos aqui, não tenhamos o futuro que ambicionamos. Se não há ninguém a contrariar isso, quem está preocupado com a carreira, e tem possibilidades, acaba por ir embora”, analisa Marta. Gonçalo corrige: “Até mesmo quem não tem possibilidades encontra maneira de ir”, com o que Marta rapidamente concorda, e acrescenta tratar-se de um grande esforço emocional e financeiro. “Nós tivemos de fazer um empréstimo de estudantes que estamos agora a começar a pagar porque encontrámos trabalho. Mas é um risco”, avisa.

Para já, Marta está a colaborar com vários projectos na Fundação Champalimaud e Gonçalo faz parte de um grupo de investigação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. O próximo passo é seguir com doutoramento em Portugal, mas com colaborações em projectos internacionais.

 

 

Sugerir correcção
Ler 1 comentários