Marido e mulher proibidos de partilhar cockpit

Casal de pilotos perdeu acção contra a companhia SATA: juízes entenderam que a segurança dos passageiros pode estar comprometida se os laços familiares se sobrepuserem à relação hierárquica. Especialista em questões laborais fala em violação de preceitos constitucionais.

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O casal queixa-se de estar a ser discriminado e prejudicado no seu direito à vida familiar MANUEL ROBERTO

Um casal de pilotos proibido de partilhar o cockpit do avião viu o Tribunal da Relação de Lisboa validar recentemente a decisão da companhia aérea SATA Internacional de impedir que marido e mulher voem juntos. O litígio dura desde 2013 e já originou atrasos de várias horas em ligações aéreas, com o casal a tentar embarcar em conjunto, sem sucesso.

Tanto os juízes do Tribunal do Trabalho como aqueles que reapreciaram a questão, após o casal ter recorrido da sentença inicial, foram sensíveis aos argumentos da SATA, num caso que o Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil se recusa a comentar. “O tipo de relacionamento existente entre membros do mesmo agregado familiar, designadamente cônjuges, pode mais facilmente abrir brechas na relação hierárquica vertical” entre piloto e co-piloto, diz o acórdão da Relação de Lisboa. O que faz aumentar o risco quanto à segurança dos voos, alertam.

Chamado a pronunciar-se sobre a questão logo em 2013 o então vice-presidente da Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC, que na altura tinha a designação de INAC), Paulo Soares, expressou idêntica posição, embora de forma menos assertiva. Numa reunião do conselho de administração da aerotransportadora destinada unicamente a debater este assunto, e na qual esteve presente como convidado, este comandante interrogou-se sobre se “a relação hierárquica vertical é ou não afectada pela indissociável relação horizontal ou de paridade relacional entre cônjuges” que trabalham sob as ordens um do outro, como era o caso. “O relacionamento familiar pode causar falhas de hierarquia”, assinalou. Questionada agora sobre o assunto pelo PÚBLICO, a ANAC admite não existir, nem na legislação nacional nem na internacional, nenhuma proibição de familiares próximos pilotarem o mesmo voo. O que há é um princípio geral de rotatividade das tripulações que “é o mais avisado em matéria de segurança de voo.” A mesma entidade desconhece a existência de litígios semelhantes. Na TAP, por exemplo, não existe qualquer restrição a este nível.

Casal protagonizou acidente em 2013

Casados há vários anos, Abel Coelho e a mulher protagonizaram um acidente quando um avião que pilotavam no início de Março de 2013 teve problemas na aterragem em Ponta Delgada. Não houve vítimas, mas os custos da reparação – que foram cobertos pelo seguro – orçaram 618 mil euros.  Foi após o acidente que a companhia percebeu que no ano anterior o casal teria feito 85% dos voos em conjunto. O comandante Abel Coelho alega que, se o fizeram, foi muitas vezes em benefício da SATA: “Éramos muito chamados para suprir falhas, quando não havia mais ninguém para voar”.

O casal queixa-se de estar a ser discriminado em relação aos restantes colegas e prejudicado no seu direito à vida familiar, uma vez que com horários desencontrados tem menos tempo para passar em conjunto. Processaram a empresa, à qual pediram uma indemnização de 20 mil euros, além de poderem voltar a tripular o cockpit em simultâneo. “Muito pior é pessoas que não se falam serem escaladas para voar juntas – e isso continua a suceder”, objecta Abel Coelho.

Porém, os juízes concluíram que, embora devam ser proporcionadas aos trabalhadores condições para conciliar a vida profissional com a familiar, “daí não resulta que esse interesse deva prevalecer sobre o interesse da comunidade da segurança de voo”.

“Não cumpre ao tribunal averiguar da bondade desta medida, sendo certo que a mesma se mostra justificada e se afigura proporcional ao objectivo a que se destina: observância das regras de segurança”, pode ler-se na sentença do Tribunal do Trabalho, com a qual o procurador do Tribunal da Relação que analisou o caso concordou.. “É natural serem desculpadas”, entre familiares próximos, “pequenas falhas que podem ser fatais para quem tem o destino de tantas vidas nas suas mãos”, escreveu este último.

Especialista em direito laboral, o advogado Garcia Pereira mostra-se chocado: “Tanto pode existir uma brecha nas relações hierárquicas entre marido e mulher como entre namorados. E se forem companheiros de copos? A companhia faz-lhes um teste de amizade?”, interroga, acrescentando que este tipo de decisões abre caminho à discricionariedade – além de violar, no seu entender, vários preceitos constitucionais e da convenção europeia dos direitos humanos, desde a intromissão injustificada na vida das pessoas até ao princípio da igualdade entre cidadãos, passando pela conciliação da actividade profissional com a vida familiar.

“Fico estarrecido pela forma simplista como questões desta complexidade são tratadas”, observa o advogado. “No reinado da troika a legislação laboral foi alvo de alterações que comprimiram os direitos dos trabalhadores. Mas surgiram, a par destas modificações legislativas, decisões jurisdicionais no mesmo sentido, embora sem fundamento legal”.

Voo sofreu atraso de sete horas

Em meados de Agosto de 2014, um voo da SATA Internacional sofreu um atraso de perto de sete horas, por a mulher de Abel Coelho não ter sido autorizada a voar com o marido, deu o tribunal como provado. Quinze dias antes outra ligação aérea descolara no dia seguinte ao previsto pelo mesmo motivo. O casal garante ainda que foram várias as vezes que a SATA fretou voos a outras empresas, alegando falta de tripulação disponível, quando podia tê-lo evitado se os deixasse voar juntos.

Confrontada com um passivo total que ascendia aos 190,3 milhões de euros no final de 2013, segundo um relatório do Tribunal de Contas deste ano, a empresa pública não quis revelar ao PÚBLICO quanto já lhe custou manter esta proibição, nem responder a várias outras questões sobre o caso, tendo-se limitado a emitir uma declaração de carácter genérico, segundo a qual as suas boas práticas “resultam do cumprimento da legislação e também das recomendações que vão sendo produzidas pelas entidades responsáveis, externas e internas à organização.”

“A segurança é um processo em contínua vigilância e melhoria. As vidas e os bens cujo transporte nos é confiado merecem-nos um cuidado prioritário”, acrescenta a transportadora aérea, que se recusa a explicar quais as irregularidades imputadas ao casal que, mesmo antes do acidente de 2013, quase lhe custaram a perda da licença para voar. Na já referida reunião do conselho de administração da empresa de 2013 o então presidente da SATA, António de Menezes, aludiu ao facto de a companhia sediada nos Açores ter ficado na iminência de ver suspenso o seu certificado de operador aéreo caso não corrigisse várias situações consideradas anómalas.

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