Fez-se uma "gestão corrente" na saúde nos últimos quatro anos de governo

Quase no final do seu mandato, Jorge Simões, presidente da Entidade Reguladora da Saúde, admite que, nos últimos quatro anos, “conseguiram-se ganhos significativos na área do medicamento", mas em tudo o resto não se passou de uma "gestão corrente”.

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Jorge Simões, presidente da Entidade Reguladora da Saúde Rita França

“Os políticos trabalham para quatro anos e os estadistas, para o longo prazo”, enfatiza o presidente da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), que recorda os exemplos de Albino Aroso e de Correia de Campos, políticos "contestados" no seu tempo mas hoje reconhecidos como "figuras ímpares". Sobre o desempenho de Paulo Macedo, refugia-se num cauteloso "não faço comentários". Defendendo que não vai ser possível gastar mais dinheiro com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) do que os actuais "oito mil milhões de euros" por ano, Jorge Simões diz que há ainda muito trabalho de "desburocratização" e combate a "ineficiências" a fazer. No curto prazo, aconselha, é necessário reconquistar a confiança das pessoas e dos profissionais do SNS, que ficaram "abalados" nos últimos anos.

Tem dito que as famílias portuguesas pagam muito dinheiro do seu bolso para a saúde. Nos últimos anos, a situação agravou-se. Como foi possível, se o preço dos medicamentos, uma fatia importante desta despesa, baixou?
Como o valor global das despesas em saúde [em geral] diminuiu,não é uma surpresa o facto de as despesas out of pocket, o que nos sai do bolso, ter tido um pequeno crescimento.

Mas os portugueses não são dos que mais pagam do seu bolso para a saúde nos países da OCDE?
Somos dos que pagam mais, não os que pagam mais. A componente dos pagamentos directos tem crescido, o que significa que a responsabilização pública tem diminuído. Esse é um dos aspectos mais complexos e mais importantes da saúde em Portugal.

Por que é que os portugueses estão a pagar mais?
Isso acontece porque muitos preferem aceder a cuidados prestados pelos privados, na medida em que os cuidados públicos não representam uma resposta atempada ou com a qualidade que podem pagar. Também as taxas moderadoras, embora representem um valor relativamente baixo da receita global, menos de 3%, são um pagamento directo das pessoas.

Dizia, em 2011, que a chegada da troika era uma oportunidade única para alterar aquilo que estava mal. Acha que esta oportunidade foi aproveitada?
Iria atrás. Em 2007/2008 coordenei uma comissão para a sustentabilidade financeira do SNS e fizemos recomendações (na área das taxas moderadoras, deduções fiscais, ADSE) que na altura ficaram na gaveta, mas depois foram postas em prática. Mas havia muito mais, em termos de avaliação económica e clínica de equipamentos e tecnologias, e isso ficou por fazer.

Mais tarde, já quando estava na ERS,  fizeram um estudo e recomendações sobre a Carta Hospitalar (apontando redundâncias em muitos serviços hospitalares) que também ficaram na gaveta. O ministro não gostou dos resultados?
Os estudos independentes têm esse problema, nem sempre correspondem à vontade de quem os pede. A independência às vezes é um problema. É uma questão que fica seguramente para o próximo Governo, rever a rede de oferta pública e conseguir ganhos de eficiência, algo que foi quase completamente esquecido nos últimos anos.

O ministro Paulo Macedo disse que avançou com esta reforma, porque, por exemplo, criou centros hospitalares. Não concorda?
Não temos evidência de que os centros hospitalares tenham produzido resultados mais eficientes. E, atenção, isso não é uma reforma hospitalar.

Fazer essa reforma vai ser muito complicado porque será sempre profundamente impopular…
Claro, mas depende do processo. De qualquer forma, é inadiável. Se vamos ter um crescimento dos gastos com a saúde, nomeadamente por força do descongelamento dos salários que representam cerca de 60% dos encargos do SNS, temos que começar a pensar, de uma maneira aprofundada e séria, quais são os remédios que, sem pôr em causa princípios constitucionais, permitirão alguma contenção de gastos.

Quais são estes remédios? Aumentar os impostos?
Isso é um susto! De modo nenhum. Continuar um trabalho já feito no passado, reunir muito conhecimento, ter a habilidade política de tomar decisões. Há custos de burocracia que podem ser aligeirados. Não faz sentido falar em aumento de impostos quando ainda temos tanto trabalho de desburocratização e [de combate] a ineficiências que custam caro.

Então estes anos não representaram um desperdício da oportunidade de que falava?
Na área do medicamento conseguiram-se ganhos significativos, em tudo o resto foi uma gestão corrente.

Fizeram vários estudos e muitas recomendações, mas a maior parte não foram seguidas. Porquê?
São opções políticas. A ERS não é um Ministério da Saúde bis. Não faz decisão política. Compete aos cidadãos fazer uma avaliação dos resultados das decisões políticas.

O caos vivido nas urgências no Inverno passado foi um sinal do estado em que se encontra o SNS?
Aqui o que falhou foi a antecipação de um problema que devia ser conhecido dos decisores. [Voltando à reforma da rede hospitalar], temos que começar por conhecer bem o país e as regiões, para depois tomar decisões. Não deve haver um pronto-a-vestir no sentido de diminuir de Norte a Sul o que quer que seja. Temos défices e situações superavitárias que estão identificados.

Há muito tempo que se diz que Portugal tem um modelo hospitalocêntrico e que é preciso apostar nos cuidados primários e nos cuidados continuados. Mas não se sai daqui…
Na retórica estamos todos de acordo. O problema é a prática.  Podemos olhar para países que tiveram sucesso em grandes programas de prevenção de saúde. Em Portugal, temos uma esperança de vida semelhante à da Noruega, mas as pessoas aos 65 anos têm uma expectativa de apenas mais cinco anos de vida saudável, quando os noruegueses têm mais 14,5 anos.

Ou seja, vivemos mais, mas vivemos mal nessa fase da vida?
Exactamente.  Essa é a questão central em relação à qual as questões do acesso e sustentabilidade financeira são subsidiárias. Ou seja, como é que vamos pôr em prática um grande programa de promoção de saúde para evitar a enorme afluência aos hospitais por força de doenças que só podem ser tratadas nos hospitais. Para isso é necessário não pensar em termos de quatro anos, mas em termos de longo prazo.

Porque é isso não acontece muitas vezes?
Essa é a velha distinção entre políticos e estadistas. Os políticos trabalham para quatro anos e os estadistas, para o longo prazo. Estes também só vêem reconhecidos os seus méritos passados anos ou décadas. Temos o exemplo de dois grandes políticos de saúde que foram criticados [no seu tempo], como Albino Aroso [que foi secretário de Estado da Saúde de um Governo do PSD] e Correia de Campos [ministro da Saúde de um Governo do PS]. Hoje há um amplo consenso em relação a estas figuras ímpares. O que fizeram de diferente? Conheciam bem as questões da saúde, não partiram do zero, mas, fundamentalmente, pensavam as questões de longo prazo. O grande desafio que se coloca ao próximo Governo é não pensar apenas na legislatura. Quem chega à decisão política tem de ter perspicácia política mas também muito conhecimento e ideias relativamente arrumadas.

Acha que actual ministro estava nessa situação?
Não faço comentários.

Depois dos cortes dos últimos anos, como está o SNS? Há os que dizem que está moribundo e os que defendem que o salvaram. Em que ficamos?
No curto prazo o que é necessário é reganhar a confiança das pessoas e dos profissionais do SNS que, na verdade, estão abalados. Se os serviços públicos têm menos dinheiro, se têm respostas até mais tardias em situações em que as pessoas necessitam de respostas muito rápidas, é claro que alguma dessa confiança pode estar perdida. Há ainda a questão dos profissionais, que estão desmotivados e necessitam de uma palavra de conforto.

Como se resolve o problema do financiamento do SNS?
Não com uma medida, duas ou três. As medidas de curto prazo não servem.

Mas acha que é possível gastar mais em saúde em Portugal?
Penso que não. Não vai haver mais dinheiro para a saúde.Temos oito mil milhões de euros [por ano].

Então, onde se vai buscar o dinheiro?
Revendo a oferta de cuidados. As coisas não têm que ser necessariamente como as conhecemos. Como também no passado houve alguma reconfiguração, é possível que agora esta seja mais aprofundada. Isso passa pela criação de unidades de proximidade, que não terão blocos operatórios, nem urgências. Hoje não temos ilusões de querermos ter tudo ao virar da esquina.

O problema é que muitas pessoas passaram a ter que pagar o transporte do seu bolso para chegar a unidades do SNS, que ficam longe. Isto não é uma injustiça?
Quando se retira algo fundamental, muitas pessoas vão deixar de poder utilizar um serviço de saúde que supostamente é universal. Portanto, uma pequena poupança pode provocar resultados muito negativos na vida das pessoas. Essa medida [pagamento dos transportes] devia ser repensada à luz de uma realidade que se alterou, devia ser reavaliada.

E as taxas moderadoras?
Acho que deixam de fora 50% da população, o que é aplaudido por quase todos. Resta saber se alguém com mais de 628 euros de rendimento mensal deve pagar estas taxas.

É ou não possível já detectar o impacto da crise na saúde dos portugueses ou isso só vai acontecer dentro de algum tempo?
O impacto da crise só se vai notar daqui a vários anos. Agora, há um impacto no comportamento das pessoas, estamos mais pobres, as pessoas estão mal nutridas, têm problemas mais complexos ao nível da saúde mental. Tudo isso tem implicações. A saúde sofre de dois grandes males: a demografia e a economia.

O que pensa da generosidade dos últimos dias, manifestada, por exemplo, no anúncio de um plano de recuperação de listas de espera para cirurgias com um valor de 22 milhões de euros, depois de tantos cortes financeiros?
Também é uma interrogação que coloco a mim próprio. Provavelmente os pagamentos serão feitos mais tarde.

Os próximos tempos vão ser mais fáceis?
A única certeza que temos é que vão ser difíceis.  

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