Mais 600 doentes por médico de família? É uma medida "eleitoralista"

Ministério anuncia incentivos para médicos de família que aceitem ficar com mais utentes. Associação e sindicatos dizem que proposta afectará qualidade do serviço. Ordem dos Médicos fala em "histeria cega".

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Subornos em obras de centros de saúde terão permitido ao suspeito arrecadar mais de um milhão de euros. Paulo Pimenta

Os médicos de família das zonas carenciadas que aceitem aumentar as suas listas de 1900 para 2500 utentes vão poder receber até mais 741 euros brutos para compensar o acréscimo, voltou a anunciar o Ministério da Saúde, que pôs em consulta pública um projecto de diploma neste sentido, a apenas dois meses das eleições. Tanto a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) como os os dois sindicatos médicos consideram que esta é uma “proposta eleitoralista” que não será exequível, prevendo mesmo que poucos ou nenhuns profissionais venham a aderir. A Ordem dos Médicos também critica.

Mesmo assim, o Governo decidiu avançar com esta proposta, que já tinha, aliás, sido anunciada em Abril. A medida do aumento das listas em troca de um incentivo consta de um projecto de diploma que está em consulta pública e que o Governo quer levar a Conselho de Ministros ainda durante o mês de Agosto, explica esta quinta-feira o Jornal de Notícias.

A proposta não passa de uma “utopia”, diz o presidente da APMGF, Rui Nogueira, que alerta que, mesmo com o actual número de doentes, as condições de trabalho já são difíceis. “Não é sequer desejável que os médicos de família aceitem um aumento de listas. Não é possível dar consultas reais”, assegura Rui Nogueira, que lamenta que o Ministério da Saúde “queira fazer antes das eleições o que não fez em quatro anos”.

Os responsáveis dos dois sindicatos médicos contestam igualmente esta medida e defendem que é “impossível” de concretizar na prática” e prevêem que “não terá qualquer adesão”. É uma medida “eleiçoeira”, classifica Roque da Cunha, do Sindicato Independente dos Médicos (SIM). “O total de 1900 utentes é a linha vermelha, o limite dos limites. É altamente desaconselhável fazer mais do que isto, é mau para os utentes, é posta em causa a qualidade”, enfatiza.

“É impossível que um médico de família se responsabilize por 2500 utentes”, reforça, por sua vez, Merlinde Madureira, da Federação Nacional dos Médicos (FNAM). Este foi, aliás, um dos pontos em que o Governo não conseguiu a concordância dos sindicatos nas negociações que culminaram no último acordo, assinado em Julho passado. Com esta medida, "é possível que os doentes vejam o médico, mas o médico não vai ver os doentes”, ironiza a dirigente sindical.  

O ministro Paulo Macedo já tinha, sem sucesso, tentado chegar a um acordo com os sindicatos médicos para um aumento generalizado das listas. Agora a ideia seria avançar com a medida nas chamadas zonas de “interesse público” por manifesta carência de profissionais, estimando a tutela que conseguisse abarcar mais 200 mil pessoas sem médico de família.

Este valor implicaria que mais de 300 clínicos aceitassem a subida máxima de 1900 para 2500. O aumento terá um carácter transitório de dois anos, com uma revisão anual, e a adesão dos médicos de família é voluntária. O acrescido de utentes pode ser feito em parcelas de 50 e com o critério das chamadas “unidades ponderadas”, em que, por exemplo, as crianças e os idosos pesam mais.

Para Rui Nogueira, “a medida não é exequível”. “Mesmo o aumento para 1900 doentes que aceitámos em 2012 era excepcional e limitado no tempo, apenas enquanto as condições assim o exigissem. Aumentar para 2500 é absurdo e uma utopia. Não estamos a dar médicos de família a todos os portugueses quando isto implicaria fazer 35 a 40 consultas por dia, fora o trabalho não assistencial”, defende o médico.

O clínico acredita que “só pontualmente” outros colegas vão aderir a esta medida e insiste que “ninguém aguenta dia após dia ver este número de doentes”. Depois, lembra que este aumento teria sempre de ser acompanhado “pelo reforço de outros profissionais como enfermeiros e secretários clínicos”.

1,2 milhões sem médico de família
Nas contas do Ministério da Saúde, no final do primeiro semestre existiam perto 1,2 milhões de pessoas sem médico de família (11,7%), o que corresponde a perto de 12% da população. Mas o presidente da APMGF avança que, a prazo, o problema será solucionado e alerta que o maior problema está em zonas como Almada, Seixal, Sintra e Amadora, onde quase um terço das pessoas não têm médico de família.

Há 236 novos médicos de família prontos a serem colocados e, em Abril de 2016, há mais perto de 400 a concluir a especialidade. Rui Nogueira estima que ao todo ainda faltem 800 especialistas, mas critica antes que Paulo Macedo “nada tenha feito para contrariar as saída de centenas de médicos por reforma antecipada” e que “tenha feito orelhas mocas ao que se vive no terreno”.

Por tudo isto, Merlinde Madureira adianta que a FNAM voltou já a enviar uma posição de discordância a este projecto em consulta pública. “Quantos médicos acha que vão aderir? Zero”, reafirma também Roque da Cunha, sublinhando que “1900 utentes é o limite admissível para prestar cuidados com qualidade”.

Um problema de décadas

"O Ministério da Saúde está a querer resolver em semanas um problema de décadas" e esta proposta é "mais uma a juntar a várias que tem feito e que não fazem qualquer sentido", defendeu também o presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos (OM), Carlos Cortes. 

O médico considera mesmo que o Ministério da Saúde está "numa histeria cega e perigosa" relativamente à medicina geral e familiar. Dá outros exemplos: o projecto aprovado na semana passada em Conselho de Ministros que permite atribuir esta especialidade aos clínicos gerais que tenham seis anos de prática clínica, bem como a proposta de pôr fim ano comum do internato médico (período de tempo durante o qual passam por vários serviços). 

"O ministério adoptou, claramente, uma estratégia de desvalorização da formação médica e da qualidade da prestação dos cuidados de saúde. O que parece importar é a quantidade de actos médicos e não a qualidade dos mesmos", lamenta Carlos Cortes.

O responsável da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães,  acusou igualmente o Ministério da Saúde de protagonizar uma "agressão inaceitável à formação médica» em Portugal.

"Já todos entendemos que medicina o ministro Paulo Macedo quer para o país. Uma medicina de ‘guerra’, normalizada, a retalho, em grandes superfícies, em parte realizada por outros profissionais de saúde, com médicos e doentes de primeira e segunda categoria", sustentou Miguel Guimarães, em comunicado.

O ministro Paulo Macedo tem vindo, por diversas vezes, a anunciar a intenção de alargar as listas de utentes dos médicos para aliviar a falta destes profissionais nos centros de saúde, um problema crónico em Portugal. Quando tomou posse, até chegou a anunciar, à semelhança dos seus antecessores, que iria dar um médico de família a cada português. Esta promessa volta a surgir no programa eleitoral do PSD/CDS, que atira agora para 2017 o seu cumprimento.
 

 

 

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