Condenados por tráfico de pessoas mais do que duplicaram no último ano

Maioria dos condenados por tráfico de pessoas cumpre pena fora da prisão. No seu relatório anual sobre tráfico humano em mais de 180 países, Washington insiste na importância de aplicar “sentenças suficientemente dissuasivas” em Portugal.

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Nos últimos anos, homens mas também mulheres, estrangeiros e portugueses foram condenados por tráfico de pessoas Nelson Garrido

O desfecho dos processos judiciais pode vir a ser outro – foram interpostos recursos, susceptíveis de confirmar ou não as condenações em primeira instância. Mas desde já, as decisões dos tribunais em 2014 mostram que o número de pessoas condenadas pelo tráfico de pessoas mais do que duplicou em Portugal. A sentença aplicada, na maioria dos casos, continuou a ser a pena suspensa. A prisão efectiva foi apenas decretada a uma minoria dos traficantes condenados – portugueses e estrangeiros.

"O sistema judicial começou a apropriar-se do crime de tráfico de seres humanos e começaram a existir mais condenações”, diz Manuel Albano, relator nacional para o tráfico de seres humanos da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) da presidência do Conselho de Ministros. “Significa que há uma maior consciencialização para este fenómeno de todos os agentes envolvidos no seu combate, o sistema judicial, as polícias, as organizações da sociedade civil, os departamentos do Estado [em ministérios].” No sistema judicial, os magistrados têm recebido muita formação sobre o tema, indica Manuel Albano.

O crime de tráfico de pessoas só foi autonomizado na revisão do Código Penal de 2007, quando também passou a incluir o tráfico não apenas para fins de exploração sexual, mas também laboral. Sendo punido com penas entre os três e os 10 anos de prisão, admite a aplicação de prisão preventiva como medida de coacção.

Quatro processos, envolvendo dezenas de agentes ou suspeitos, foram julgados em 2014: resultaram em 22 condenações pelo crime de tráfico de pessoas e 16 condenações pelo crime de escravidão ou trabalho forçado, de acordo com dados fornecidos pela Procuradoria-Geral da República sobre as decisões em primeira instância. No total, 38 pessoas foram condenadas por crimes relacionados com o fenómeno da exploração laboral ou sexual, que podem ou não ver o crime confirmado por um tribunal superior. Nos 16 casos de crime de escravidão, punido com penas de prisão de mais de cinco anos (até 15 anos), todas as sentenças resultaram em penas de prisão efectiva. Já no caso dos 22 condenados por tráfico de pessoas, 18 viram serem-lhes decretadas penas de prisão com execução suspensa.

Ou seja: um número muito superior ao de 2013, quando nove pessoas foram condenadas por tráfico de pessoas, e de 2012, quando 10 traficantes foram considerados culpados, por um tribunal de primeira instância. Nesses 19 casos, segundo os dados da Direcção-Geral de Política da Justiça (DGPJ), apenas oito foram condenados a prisão efectiva.

Apesar de haver muito mais condenações em 2014, apenas quatro homens e mulheres (um português e três estrangeiros) constam nas estatísticas dos Serviços Prisionais, como estando a cumprir pena de prisão por esse crime, a 31 de Dezembro. No ano anterior, estavam cinco (quatro estrangeiros e um português).

Sem documentos e com dívidas
Num dos casos julgados em 2014, envolvendo cinco arguidos em Beja, as vítimas eram recrutadas na Roménia, sob promessa de trabalho, e controladas, com ameaças directas ou a familiares; trabalhavam para saldar dívidas contraídas para pagar a viagem; os traficantes, estrangeiros, foram condenados a penas suspensas de menos de cinco anos.

Num outro caso, os traficantes, também estrangeiros, agrediam fisicamente as vítimas, retiravam-lhes os documentos e forçavam-nas a várias actividades, como a mendicidade. Também julgado em 2014, com condenações por tráfico, não para exploração laboral mas para exploração sexual, foi o caso investigado em Vila Nova de Famalicão de uma rede que recrutava e trazia mulheres de países da América Latina para a prostituição.

As vítimas são libertas em situações identificadas pelas polícias, em rusgas, ou porque pedem ajuda, o que acontece raramente. As Estatísticas da Justiça da DGPJ também indicam uma maior prevalência deste crime, em número de casos registados pelas autoridades policiais, desde 2012, quando foram registados 22 casos. Um ano depois, foram 28. Em 2014, foram iniciadas 44 investigações, segundo a PGR.

O fenómeno pode estar ou não em crescimento. Para Manuel Albano, relator nacional para o tráfico de seres humanos, será difícil tirar conclusões definitivas a partir dos números conhecidos. Não espelham toda a realidade. E podem não reflectir a tendência correcta. “Neste tipo de criminalidade, existem cifras ocultas muito grandes, em que a subida ou a descida pode não ter a ver com a realidade”, explica.

“O fenómeno é muito opaco”, diz também Rita Penedo, chefe da equipa do Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH), ligado ao Ministério da Administração Interna (MAI). E acrescenta que o número de vítimas sinalizadas pelo relatório anual do OTSH é apenas uma parte dos números reais. “Haverá casos que não chegam ao conhecimento” de nenhuma entidade, até pela natureza do crime, em que “muitas vezes as vítimas não apresentam denúncia nem pedem ajuda”. “Não se sabe é a extensão [dos casos desconhecidos]”, afirma a socióloga.

Cúmplices dos traficantes
Nos casos julgados nos últimos anos, pelo menos um funcionário de uma instituição bancária (por colaboração num crime de branqueamento de capitais associado) e um funcionário de uma agência de viagens que facilitou o transporte das vítimas também foram condenados.

Não houve casos de envolvimento ou alegada cumplicidade de funcionários do Estado neste crime, transmitidos pelas autoridades portuguesas, lê-se no relatório sobre tráfico de seres humanos no mundo, divulgado pelo Departamento de Estado norte-americano nesta semana, que inclui Portugal no conjunto de países que "reconheceram a existência do tráfico humano, desenvolveram esforços para resolver o problema e cumpriram os requisitos mínimos para eliminar o fenómeno".

O relatório, que descreve Portugal como "local de origem, passagem e destino de homens, mulheres e crianças usadas para exploração sexual ou laboral", recomenda que as autoridades portuguesas continuem a investigar crimes de tráfico e a condenar traficantes, decretando “sentenças suficientemente dissuasivas”.  Para Manuel Albano, o relatório 2015 Trafficking in Persons Report limita-se a reflectir aquilo que foi “um país – os Estados Unidos – a avaliar outro” e a retratar a situação com os dados conhecidos, tratados e fornecidos por Portugal.

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