Loucura automóvel

O meu carro ficou louco. Ensandeceu por completo. Se engato a primeira, anda para trás. Quando piso no travão, acendem-se os faróis. E posso tirar-lhe a chave, com o motor em funcionamento, que ele não desliga.

Nem o melhor mecânico — dos antigos, como os bons médicos generalistas que ainda percutiam os dedos no abdómen do paciente para identificar moléstias, antes de surgir a ecografia, a tomografia, a ressonância, a densimetria e todos as outras tecnologias que estão a salvar vidas e a enriquecer clínicas — pois, como eu dizia, nem o melhor mecânico conseguiria diagnosticar tão complexa patologia como aquela que o automóvel exibe. É transversal a todos os seus sistemas — o mecânico, o eléctrico e o químico — o que sugere que, prestes a completar 17 anos, o carro está mesmo a chegar ao fim.

Mas não foi por isso que a senhora da carrinha de luxo me ultrapassou várias vezes na marginal entre Cascais e Lisboa. Dirigia um modelo corpulento, de chassis elevado e rodas espessas, duas toneladas de aço, plástico e borracha que exigem uma colossal dose de energia para serem movimentadas, seja para transportar o condutor, a família ou um ramo de coentros.

A mulher aparentemente não se sentia plena só com a realidade imediata à sua volta. Precisava de mais, tinha de falar ao telemóvel. Satisfazia esta inexorável necessidade social com alguma graça, uma mão no volante, outra no aparelho, sempre a sorrir, mas completamente desatenta a tudo o resto. Não admira que pisasse a fundo no acelerador, esquecendo-se do limite de velocidade.

Passou por mim pela primeira vez sem qualquer dificuldade. Mas eu, mesmo limitado pelo ritmo paulatino do provecto automóvel, reencontrei-a no semáforo seguinte, que tinha passado a vermelho quando ela excedeu o máximo permitido. Fantástico sistema, aliás. Mesmo que provavelmente não se apliquem multas, a cor encarnada é um dissuasor hipnótico, gerador de medos inexplicáveis que nos fazem parar, seja lá qual for a circunstância. Lamentavelmente, os santos pagam pelos pecadores, pois por mais que se tente manter a velocidade legal para evitar o pára-arranca, há sempre alguém que pisa o risco e faz cair o vermelho.

Ao verde, ela arrancou novamente e desapareceu no horizonte. Mais uma vez, no entanto, voltei a emparelhar com a sua lustrosa viatura no semáforo seguinte. E assim continuámos, nesse jogo de gato e rato, para o qual ela não ligava a mínima, absorta na sua esfuziante conversa telefónica.

Pus-me a pensar no que seria ambientalmente pior: manter a velocidade constante com a minha lata velha, que deita CO2 para o ar como quem fuma três maços de cigarros, ou andar com um carro novo, certamente com emissões mais baixas, mas permanentemente a acelerar e a travar. Venha o diabo e escolha.

Alternativa vencedora, mas proibitiva do ponto de vista orçamental, seria eutanasiar o que resta do meu automóvel e adquirir um novo, menos poluente. Receio, no entanto, que nem na sucata o aceitariam, tamanha é a desordem que vai naquela máquina.

Quando cheguei a Lisboa, rodei a chave e retirei-a num impulso único, para ver se o carro desligava. Não, ele manteve-se aceso, na certa temendo que eu o sacrificasse. Apagou lentamente, exausto, ao final de alguns segundos.
Tive pena do coitado. Tentando não lhe causar mais nenhum trauma, no final do dia regressei do trabalho em velocidade ambulatória, evitando todos os semáforos. No dia seguinte, voltei a apanhar o comboio.

Sugerir correcção
Comentar