Liberdade condicional: sim ou não?

O "caso Casa Pia" por terras da Relação.

O princípio de que a lei é igual para todos é uma das traves mestras de uma sociedade democrática. Quando parece que assim não é isso impressiona.

Diz a lei que, cumpridos dois terços da pena de prisão, a liberdade condicional deve ser concedida aos reclusos desde que seja fundadamente de esperar que atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do recluso, a sua personalidade e a evolução desta durante o tempo de prisão, este, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. Parece relativamente claro...

Estávamos em finais de 2015 e dois dos arguidos do chamado “caso Casa Pia” a cumprirem pena de prisão, decidiram, porque ambos já tinham cumprido mais de dois terços da pena, solicitar, cada um por si, que lhe fosse concedida a liberdade condicional. O recluso Carlos Cruz cumpria uma pena de 6 anos de prisão e tinha cumprido dois terços da pena em 2 de Dezembro de 2015 e o recluso Manuel Abrantes cumpria uma pena de 5 anos e 9 meses de prisão e tinha cumprido dois terços da pena em 3 de Dezembro de 2015.

Qualquer dos dois não teve sorte a nível do Tribunal de Execução de Penas: o conselho técnico emitiu, por maioria em ambos os casos, pareceres desfavoráveis, o Ministério Público também emitiu pareceres desfavoráveis e o juiz indeferiu-lhes a ambos a liberdade condicional.

A questão de fundo que impedia a concessão da liberdade condicional segundo o TEP, era simples: qualquer dos reclusos continuava a negar a prática dos crimes por que fora condenado definitivamente e pelos quais estavam a cumprir a pena de prisão respectiva e, deste modo, o tribunal não podia, fundadamente como diz a lei, esperar que não cometessem mais crimes na medida em que quanto à matéria em causa – prática de crimes de abuso sexual de menores – não tinha forma de aferir a evolução da personalidade de qualquer deles durante o tempo de prisão. Nunca tendo reconhecido a prática dos crimes de abuso sexual de menores, sobre esta matéria não havia qualquer evolução; de resto, na medida em que se declaravam inocentes, nem sequer tinham frequentado os programas dirigidos a agressores sexuais.

Recorreram ambos para o Tribunal da Relação de Lisboa: o processo de Carlos Cruz foi parar à 3.ª Secção às mãos dos juízes desembargadores Adelino Barradas de Oliveira e Jorge Raposo e o processo de Manuel Abrantes foi parar à 5.ª Secção às mãos dos juízes Agostinho Torres e João Carrola.

A situação era extremamente semelhante em ambos os processos, sendo facto assente que qualquer dos reclusos, se lhe fosse concedida a liberdade condicional, teria facilidade de integração familiar e social. Convém lembrar que a liberdade condicional não é uma medida de clemência ou de recompensa de boa conduta mas sim uma medida que visa criar um período de transição entre a prisão e a liberdade em que, no fundo, os reclusos são postos à prova sobre a sua capacidade de se comportarem dentro dos princípios pelos quais se rege a sociedade.

Em ambos os processos, os magistrados consideraram que a atitude do condenado relativamente ao crime por si cometido, nomeadamente se nega a sua prática – como era o caso –, é um aspecto crucial a ter em conta na avaliação do risco de reincidência dos agressores sexuais.

Certo é que, apesar de todas as semelhanças entre os dois processos, a solução foi diametralmente oposta: Carlos Cruz, no passado dia 7, foi restituído à liberdade, condicional é certo, com a obrigação de residir em morada certa, aceitar a tutela da equipa da Reinserção Social e procurar trabalho, para além da obrigação de pautar a sua conduta pelo respeito das leis vigentes e dos restantes cidadãos e Manuel Abrantes, no passado dia 19, pura e simplesmente, viu recusado, de novo, o pedido de liberdade condicional e vai permanecer na prisão mais largos meses.

Será que o direito, tal como o coração, tem razões que a razão desconhece?

Não, não é nada disso. São, tão simplesmente, visões do mundo diferentes: no caso de Carlos Cruz, os juízes desembargadores consideraram que o facto de o mesmo não assumir o crime e não querer participar em programas de recuperação, era manifestamente insuficiente no caso concreto para afirmar que existia um perigo de reincidência e decidiram apostar no regresso – ainda que condicionado – à vida em sociedade.

Já no caso de Manuel Abrantes, os juízes desembargadores decidiram não apostar no seu regresso – ainda que condicionado – à vida em sociedade por considerarem que, se Manuel Abrantes nem sequer se assumia como responsável pelos seus crimes, não podia pretender que se acreditasse que não os voltaria a cometer.

Quem fez mais Justiça? Eu inclino-me, claramente, para o lado dos desembargadores que ordenaram a libertação de Carlos Cruz mas, certamente, haverá outras opiniões.

Advogado, francisco@teixeiradamota.pt

Sugerir correcção
Comentar