Laicidade, religiões e paz

As religiões, quando não são instrumentalizadas por projectos políticos ou ideológicos, são factor de coesão social, reconciliação e paz.

Várias notícias recentes provindas de França revelam um nítido recrudescimento da chamada “laicidade de combate”.

Mais do que a laicidade como simples separação da Igreja do Estado (o evangélico dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus) e a confessionalidade ou neutralidade religiosa do Estado, está em causa o laicismo, como profissão de fé ideológica, da parte do Estado, de hostilidade à religião, relegada para a esfera privada e cuja dimensão social e cultural é ignorada, desprezada ou combatida.

Uma decisão judicial ordenou que fosse retirada do espaço público uma estátua de João Paulo II, porque a dimensão da cruz que a acompanha será “ostensiva”. E o autor recusou que da estátua fosse eliminada a cruz. Compreende-se: não pode conceber-se sem a Cruz o testemunho da vida desse Papa que foi reconhecido, também por não católicos, como “um gigante da história contemporânea”. Mas não são menos “ostensivas” as igrejas e catedrais que, invariavelmente, marcam, como ex-libris, as paisagens de aldeias e cidades francesas e europeias.  

A lei que proíbe “sinais ostensivos” de pertença religiosa nas escolas foi invocada para proibir uma jovem muçulmana de usar uma saia demasiado comprida. Um contraste tão grande com os hábitos correntes só pode ter por base a pertença religiosa muçulmana. A escola, que agora tolera a indumentária mais bizarra ou impudica, já não tolera o que possa ser, mesmo que de forma remota ou ambígua, uma manifestação de fé religiosa. Todas as convicções podem ser reveladas publicamente, em nome da autenticidade e da transparência, mas não a religião. Já não há “direito à diferença”: os muçulmanos têm de vestir como todos os outros. E não será assim que a sua integração será facilitada; será mais forte a tentação de se fecharem em ghettos, rejeitando a cultura europeia no seu todo, para preservarem a sua identidade

Discute-se a proposta de alargar o campo dessa lei às universidades, como se os jovens universitários fossem tão influenciáveis pelo “proselitismos religioso” como pretensamente o serão os jovens de outros ramos do ensino. E também se discute uma lei que obriga à neutralidade religiosa do ensino pré-escolar, que alguns querem estender a escolas não estatais que recebam fundos públicos. Chega a ser invocado o respeito pela liberdade de consciência de crianças de três ou quatro anos.

Um movimento cívico pretende alterar o nome de localidades que tenham o nome de santos. Uma tarefa ambiciosa, pois calcula-se que sejam cerca de dez por cento das pequenas localidades francesas. Assim se procura impor coercivamente o renegar de uma herança cultural, impor o cancelamento da memória histórica colectiva.

É fácil associar este recrudescer do laicismo aos recentes episódios de terrorismo com motivação pretensamente religiosa. Quem considere que as religiões são necessariamente factor de conflito e violência quer ver nesses episódios a confirmação dessa tese. Daí que elas devam ser afastadas do espaço público, a bem da convivência pacífica. Mas outras violências assim se geram.

De um princípio exactamente oposto partiu um “debate temático de alto nível” no âmbito das Nações Unidas, que decorreu no passado dia 22 de Abril, sobre o papel das religiões, e do diálogo inter-religioso, no fomento de uma cultura de tolerância e reconciliação, contra o extremismo violento. As religiões, na sua autenticidade, quando não são instrumentalizadas por projectos políticos ou ideológicos, são factor de coesão social, reconciliação e paz. Não há, por isso, que temer a sua presença no espaço público. Pelo contrário, há que valorizar o seu papel, e o papel do diálogo e colaboração entre crentes de várias confissões. Isso mesmo reconheceram nesse debate quer os dirigentes religiosos presentes, quer os representantes das Nações Unidas e de muitos Estados que nele intervieram.

Um desses dirigentes religiosos, Maria Voce, presidente do Movimento dos Focolares, relembrou: “A guerra nunca é santa e nunca o foi. Deus não a quer. Só a Paz é verdadeiramente santa, porque o próprio Deus é a Paz”.

Juiz

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