Laboratórios doaram 75 milhões a profissionais e organizações desde 2013

A área terapêutica da diabetes foi a que recebeu mais no ano passado. Para a hepatite, em 2014, foram só 200 mil euros.

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Hugo Delgado/Arquivo

No ano passado, a indústria farmacêutica concedeu apoios e subsídios de mais de 60 milhões de euros a profissionais e organizações do sector da saúde, mas estes apenas declararam ter recebido cerca de 21 milhões de euros. Agravou-se, assim, o fosso entre os valores doados e notificados pelos laboratórios e recebidos e declarados pelos profissionais e sociedades de saúde no portal da “transparência” da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed), indicam as contas efectuadas por uma empresa especializada no processamento de dados provenientes da Internet, a Interrrelate.

Em 2013, ano em que começou a funcionar esta plataforma informática, as doações declaradas da indústria farmacêutica tinha ascendido já a 14,9 milhões de euros, segundo as contas da Interrelate. Em menos de dois anos, portanto, os laboratórios farmacêuticos reportaram patrocínios de quase 75 milhões de euros, de acordo com este estudo feito no início de Janeiro.

Os números de 2014 não batem completamente certo com os dados fornecidos ao PÚBLICO pelo Infarmed. Segundo a Autoridade do Medicamento, os dados registados na Plataforma de Comunicações – Transparência e Publicidade referentes ao ano passado apontam para um total de 60, 7 milhões de euros em declarações de doações e patrocínios.

Quanto aos benefícios recebidos e declarados, estes totalizam 18,6 milhões de euros, dos quais um terço (37%) foram comunicados por profissionais de saúde, e 35% por sociedades médicas e sociedades de estudos clínicos, revela o Infarmed.

O portal foi criado com o objectivo de divulgar os apoios da indústria farmacêutica a profissionais e organizações do sector, associações de doentes e sociedades médicas, de maneira a permitir detectar eventuais conflitos de interesses e a tornar transparentes eventuais "relações perigosas" neste sector tão sensível. Mas a ferramenta parece não continuar a contar com a adesão de muitos profissionais e de sociedades médicas e científicas. No início deste ano, a plataforma albergava cerca de 73.669 mil declarações de doações, mas apenas 12.840 mil comunicações de aceitação. E apenas em cerca de um milhar de declarações era possível encontrar compatibilidades entre o doado e o recebido, segundo o estudo da Interrrelate.

Em vigor desde Fevereiro de 2013, a lei que tornou obrigatórias as declarações dos apoios superiores a 25 euros concedidos pelos laboratórios farmacêuticos a todos os intervenientes no circuito do medicamento continua, pois, a ser ignorada por uma parte substancial das entidades e profissionais de saúde. No ano passado, na sequência de muitas críticas, o valor mínimo que obriga a reportar ao Infarmed foi aumentado para 60 euros, mas essa alteração não conduziu a uma hipotética variação do diferencial.

Para o Infarmed, esta alteração de valores é uma das justificações para a discrepância encontrada entre os totais declarados pela indústria farmacêutica e os que foram notificados  pelos profissionais e pelas organizações e sociedades do sector.

Há também um prazo de 30 dias para efectuar as declarações que poderá a ajudar a explicar a discrepância, mas, no entender de Álvaro Figueira, que coordenou o trabalho de investigação da Interrelate, mesmo que não sejam exactamente coincidentes, os montantes deveriam pelo menos ser aproximados. Não é razoável esperar que seja possível anular os 38 milhões do diferencial em 30 dias, até porque correspondem a mais de 60 mil declarações em falta, admite. Mas o facto é que apenas é possível encontrar cerca de  mil “emparelhamentos” correctos entre declarações de doação e aceitação.

Na prática, o portal consiste em milhares de declarações e centenas de páginas e é de difícil consulta. A situação piorou de 2013 para 2014, porque, se se considerarem apenas os valores do primeiro ano, o desfasamento entre os montantes concedidos (cerca de 15 milhões) e os recebidos (13,4 milhões) era então muito inferior: 1,6 milhões de euros no total.

No estudo, a Interrelate até fez uma previsão para 2015. Usando um modelo baseado no comportamento verificado em 2014, é possível prever o que acontecerá este ano. As estimativas apontam para um total de 43 milhões de euros de doações, no primeiro trimestre, 50, no segundo,  58, no terceiro, e 66, no quarto.

Depois de ter proposto organizar a plataforma de forma a permitir detectar os “emparelhamentos” existentes e os que estavam em falta, e a facilitar o preenchimento do formulário para evitar erros (que surgem com frequência) e a garantir a segurança de dados privados, o Infarmed, nem a Ordem dos Médicos (OM) nem o Ministério da Saúde, demonstrou interesse nesse controlo. O bastonário da OM, José Manuel Silva, defendeu que esta declaração é “uma burocracia” que “não faz sentido”, e que bastaria, para se atingirem os objectivos de transparência em causa, que a indústria farmacêutica declarasse os respectivos donativos.  “A indústria tem um secretariado para tratar disto, agora os médicos por vezes esquecem-se, têm muito que fazer, não é por mal, e muitos deixaram de notificar, porque pensam que não faz sentido”, alegou.

A Interrelate propôs, entretanto, uma solução que facilitaria a vida aos profissionais: com os formulários preenchidos pelo secretariado da indústria, os médicos somente teriam de confirmar ou infirmar esses dados, usando a sua assinatura digital.

Por enquanto, porém, só a indústria farmacêutica manifestou interesse em conhecer os dados trabalhados, sobretudo por áreas terapêuticas. E por este tipo de áreas, a diabetes, que tem uma enorme prevalência em Portugal, surge em primeiro lugar, com 3,3 milhões de euros em 2014, seguida da psiquiatria, com 1,3 milhões.

Já a hepatite, que tem estado em foco nos últimos dias devido à aprovação de um plano que prevê a disponibilização de dois medicamentos inovadores a milhares de doentes com hepatite C, totaliza pouco mais de 200 mil euros.

Por entidades, a Sociedade Portuguesa de Cardiologia surge  em primeiro lugar. Para congressos e reuniões foram doados cerca de 27 milhões de euros e para formação e cursos 5,5 milhões.

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