Portugal une-se a outros países para baixar preço de medicamento para hepatite C

Portugal quer dar a “penicilina” da hepatite C a doentes, mas preço tem que baixar substancialmente. Hipótese de negociação colectiva na Europa para pressionar laboratório a reduzir preço pode sair de uma reunião marcada para a próxima semana.

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Estima-se que em Portugal haja cerca de 120 mil pessoas com hepatite C Rui Gaudêncio

Já há quem diga que os novos tratamentos para a hepatite C que tanta polémica estão a causar vão representar “uma revolução como a da penicilina”. O problema é que o preço do primeiro tratamento já disponível em Portugal, um medicamento de um laboratório norte-americano, é muito elevado e, em tempos de crise, o Ministério da Saúde está empenhado em criar uma espécie de aliança europeia que permita reduzi-lo substancialmente. Para a semana está mesmo marcada uma reunião, do Conselho de Emprego, Política Social, Saúde e Consumidores, em que a França vai apresentar uma moção sobre esta matéria e da qual pode sair a hipótese de negociação colectiva na Europa.

Enquanto isso, desde Janeiro que decorre o processo de negociação entre o Ministério da Saúde e o laboratório norte-americano Gilead para a comparticipação estatal do medicamento (sofosbuvir) que se destina aos casos mais graves de hepatite C e que tem taxas de cura na ordem dos 90%, segundo a apreciação da Agência Europeia do Medicamento, emitida em 24 de Outubro passado. Transmitida sobretudo por via sanguínea, a hepatite C é uma inflamação do fígado provocada por um vírus. Quando crónica, pode conduzir à cirrose, insuficiência hepática e cancro.

A Gilead quer cobrar 48 mil euros por doente por este tratamento que terá vendido ao Egipto, o país com a maior taxa de prevalência do mundo de hepatite C, por cerca de 700 euros, segundo noticiou o jornal Le Monde e a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed) fez questão de notar, numa nota divulgada quinta-feira. O acordo com o Egipto engloba cerca de um milhão de tratamentos num período de cinco anos, adiantou a agência noticiosa Reuters, em Março passado.

Alegando que os valores pedidos são incomportáveis para o seu orçamento, o Ministério da Saúde português está a tentar arranjar uma estratégia conjunta com outros países europeus. “A Europa também tem um milhão de doentes e, se nos juntarmos, será possível baixar o preço”, justifica um responsável do Infarmed. Em Maio, Portugal conseguiu que as autoridades reguladoras do medicamento de outros cinco países (Espanha, França, Itália, Grécia e Irlanda) subscrevessem já uma declaração em que se defendem estratégias concertadas para a negociação deste fármaco.

Enquanto as negociações decorrem, porém, a pressão para acelerar o processo de comparticipação do tratamento da Gilead aumenta em Portugal. A associação de doentes SOS Hepatites Portugal alerta que há pessoas que estão no limiar da sobrevivência e que não podem esperar pelo final das negociações. Esta quinta-feira promoveu uma conferência de imprensa na Ordem dos Médicos em que tornou públicos vários casos de doentes que evoluíram para cirrose ou para cancro e em que as terapêuticas disponíveis já não podem ser usadas. No encontro, o bastonário da Ordem dos Médicos revelou que há profissionais a ser pressionados pelas administrações hospitalares para não fazerem pedidos de autorização de utilização especial (AUE) para o novo medicamento. O bastonário diz que só os doentes emergentes necessitam deste fármaco e que não serão mais de uma centena, o que implica um custo imediato de entre cinco a dez milhões de euros. “Um país que desperdiçou tanto... Não pode pôr em causa 100 vidas por cinco milhões”, sustenta.

O sofosbuvir  é o primeiro de um conjunto de fármacos que prometem revolucionar o tratamento da doença. No Infarmed já deram entrada mais dois pedidos de avaliação prévia para outros medicamentos para a hepatite C, segundo revelou o presidente do Infarmed há um mês. Eurico Castro Alves acredita que a entrada na corrida destes dois novos fármacos (das farmacêuticas Abbvie e Janssen) pode ajudar também nas negociações e conduzir a uma diminuição do preço, o grande entrave à aprovação da comparticipação. “Somos todos portugueses, queremos tratar todos os doentes, mas não queremos levar o Serviço Nacional de Saúde à ruína”, disse o médico ao Jornal de Notícias, em Maio.

Estes novos fármacos têm vantagens consideráveis face aos tratamentos actuais. Além de taxas de cura muito superiores (os actuais resolvem cerca de 60% dos casos), servem para vários genótipos do vírus e são usados em períodos muito curtos (de 12 a 24 semanas), além de serem tomados por via oral.

O problema é, pois, o preço. “São valores fora do alcance da maioria dos orçamentos dos países em períodos, como o actual, de grandes dificuldades”, concede Leopoldo Matos, hepatologista e presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. “Do ponto de vista abstracto, dos doentes e dos médicos, a existência [destes tratamentos] é uma revolução, uma grande esperança, por isso a atitude ética inquestionável é recomendá-los. Agora, entendo que tem que haver equilíbrio para chegar a um valor sensato que permita tratar o maior número de doentes possível”, defende.

Quanto ao preço que terá sido negociado com o Egipto, Leopoldo Matos reflecte que o laboratório já "deverá estar arrependido" e que aquilo que pretenderá nos países mais ricos é "recuperar rapidamente o dinheiro que investiu [na investigação]".Até porque, nota também, ainda este ano vão surgir este ano no mercado pelos menos dois fármacos concorrentes e isso poderá "provocar uma baixa de preços". O médico, que trabalha num hospital privado e já mandou avaliar o preço deste tratamento, ainda não teve doentes ou familiares de pacientes que quisessem pagar do seu bolso este fármaco. As seguradoras também não o pagam na Europa.

Por isso, quando se está perante um caso desesperado, em que haja risco de vida, o que se pode fazer neste momento em Portugal é um pedido de autorização especial nos hospitais públicos. O Infarmed garante que está assegurado aos doentes o acesso aos medicamentos pelos hospitais do SNS, através deste intrumento. Por enquanto, foram concedidas 11 AUE, soube o PÚBLICO.

Mas a presidente da associação de doentes SOS Hepatites, Emília  Rodrigues, disse ter chegado ao seu conhecimento que, em Março, havia já 85 pedidos de AUE para este medicamento e que “alguns estão retidos nas secretarias das administrações dos hospitais”.

Entretanto, foi criado um grupo consultivo, a pedido do Infarmed, para definir uma estratégia para a utilização destes novos fármacos. Os peritos defendem que há um grupo de doentes prioritários para usufruir deste tratamento que estão numa fase de pré-transplante de fígado e que podem ir dos 150 aos 200.

Para justificar a demora na aprovação a comparticipação, o Infarmed nota ainda que Portugal não é caso único e “acompanha a maioria dos países da União Europeia”. Recomenda mesmo a consulta do comunicado do European Aids Treatment Group sobre este medicamento, em que esta associação pede ao laboratório que baixe o preço. “A Gilead deve disponibilizar o fármaco revolucionário (…) às pessoas infectadas que mais dele precisam, através de um programa de acesso alargado e uso compassivo”.

Além de estar comparticipado na Alemanha, Áustria, Dinamarca, Escócia, Eslovénia, Finlândia, Noruega e Suécia, há diversos países que garantem neste momento o acesso dos doentes ao fármaco através “de programas de acesso precoce”, como a Espanha, França e Reino Unido, segundo referiu o laboratório Gilead em resposta ao PÚBLICO.

Estima-se que em Portugal haja cerca de 120 mil pessoas com hepatite C.
 
Laboratório deu 26 mil euros a associação de doentes
A associação de doentes (SOS Hepatites Portugal) recebeu do laboratório Gilead um apoio superior a 26 mil euros, entre Fevereiro 2013 a 11 de Junho 2014, referem dados disponíveis na Plataforma Transparência e Publicidade, que é gerida pelo Infarmed. A presidente da associação, Emília Rodrigues, diz que o Estado deixou de apoiar as associações de doentes há quatro anos e que nenhuma sobrevive sem o apoio da indústria farmacêutica e de outras entidades.

O bastonário da Ordem dos Médicos considera que o timing de divulgação destes dados por parte do Infarmed, que criou no ano passado esta plataforma onde os dados sobre os apoios dados pela indústria a médicos e outras entidades devem ser inseridos, não foi inocente, fazendo parte de uma estratégia do MS “para pôr em causa a idoneidade da associação não discutindo os problemas concretos e a evidência científica”. 

Emília Rodrigues informa que o dinheiro recebido da Gilead representou cerca de um terço do orçamento nesse período e que essa verba foi toda canalizada para a organização do congresso da associação. “Eles são nossos parceiros sociais, assim como a Delta, a Companhia de Ideias [agência de comunicação] e a Ordem dos Médicos”, diz, notando que em 2010 o Estado cortou todos os apoios à associação de doentes. “Todas as associações de doentes no mundo trabalham com a indústria”, acrescenta. A responsável diz que é óbvio que os laboratórios que estão interessados em apoiá-los são aqueles que têm medicamentos para as patologias em causa, como é o caso da Gilead. “Se eu for pedir apoios a um laboratório de medicamentos para o coração, não me dão. Todas as empresas querem ter lucros. Nós temos a matéria-prima”.

O patrocínio de associações de doentes por parte de laboratórios é uma prática corrente, tanto que a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica criou em 2007 um código de conduta criando regras de relacionamento entre as duas entidades, replicando um código europeu que já existia. Uma das regras obriga à divulgação no site dos laboratórios, até 31 de Março de cada ano, dos apoios concedidos às associações.

Desde o ano passado, esta divulgação é também obrigatória numa plataforma criada pelo Infarmed. É lá que surge que a SOS Hepatites recebeu também 3000 euros da Bristol-Myers Squibb Farmacêutica Portuguesa, 9000 da AbbVie e 5000 da Janssen Cilag.

As associações estão obrigadas a notificar os apoios que recebem, mas a SOS Hepatites não o fez. Emília Rodrigues desconhecia esse facto e disse ter sido dada essa instrução à contabilidade, mas refere que esses apoios constam do próprio site, algo que o PÚBLICO não pôde confirmar porque a plataforma se encontra suspensa por problemas técnicos.

Já a Gilead responde que “apoia diversas organizações não-governamentais, reconhecendo a importância que a actividade representa para um melhor acompanhamento dos doentes”, acrescentando que os apoios “são enquadrados no âmbito da política de responsabilidade social da Gilead”.

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