Júlia Santos não tem impressões digitais e a ciência já encontrou o culpado

Júlia só descobriu há três anos que não tinha impressões digitais
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Júlia só descobriu há três anos que não tinha impressões digitais Foto: Joana Bourgard
Os dedos de Júlia Santos são semelhantes aos mostrados no artigo
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Os dedos de Júlia Santos são semelhantes aos mostrados no artigo Foto: Joana Bourgard
Júlia só descobriu o problema com o cartão do cidadão
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Júlia só descobriu o problema com o cartão do cidadão Foto: Joana Bourgard

Às 24 semanas, a maioria dos embriões humanos desenvolve as suas impressões digitais, imutáveis ao longo da vida. Mas há raras excepções e o PÚBLICO descobriu uma em Portugal.

As histórias e mitos urbanos de pessoas que se submeteram a intervenções para ficarem sem impressões digitais não são novidade. Mas também há quem nasça assim. A ciência encontrou uma explicação para estes casos raros: uma mutação do gene SMARCAD1 provoca esta alteração apontada como uma fórmula mágica para um crime perfeito, mas que também traz alguns problemas a quem a tem. O PÚBLICO foi conhecer Júlia Santos – uma portuguesa que desafiou as ínfimas probabilidades de nascer sem impressões digitais.

Um grupo de cientistas acaba de publicar um estudo no The American Journal of Human Genetics onde descreve uma mutação genética extremamente rara responsável por as pessoas nascerem sem impressões digitais nas pontas dos dedos – frequentemente utilizadas para identificação, nomeadamente em documentos oficiais como os bilhetes de identidade. O desvendar deste problema, conhecido como adermatoglifia, permitirá, segundo os autores, do Hospital Universitário de Basileia, na Suíça, e da Universidade de Telavive, em Israel, fornecer informação essencial para futuros estudos relacionados com mutações genéticas raras e para a actual evidência científica sobre aspectos biológicos do ser humano.

O grupo de investigadores responsável pelo artigo estudou uma grande família suíça que apresentava este problema. Segundo o trabalho agora publicado, na base da adermatoglifia está uma mutação genética no gene SMARCAD1 que codifica uma proteína relacionada com o desenvolvimento. Os cientistas avaliaram o perfil genético de nove pessoas da mesma família afectadas pelo problema e compararam os seus dados com os de sete familiares "normais". E concluíram que todos os participantes sem impressões digitais apresentavam a mesma mutação num gene que já outros trabalhos anteriores associaram a um importante papel regulador do desenvolvimento.

"Sabemos que as impressões digitais são formadas 24 semanas após a fertilização e não sofrem qualquer modificação ao longo da vida", explicou, em comunicado, Eli Sprecher, um dos autores do estudo. "No entanto, os factores que estão na base da formação das impressões digitais durante o desenvolvimento do embrião permanecem largamente desconhecidos", acrescentou, informando que famílias com tantos casos só se conhecem três no mundo. Há, no entanto, casos em que a ausência de marcas não é tão significativa. E situações de pessoas que ficaram sem impressões digitais por questões relacionadas com abrasão e contacto com determinados químicos.

Uma descoberta com o cartão do cidadão

Júlia Santos tem 59 anos, vive na zona de Lisboa, e está reformada há um ano. Não sabe se tem alguma alteração no SMARCAD1 como a família suíça, mas a verdade é que nasceu sem impressões digitais e o curioso é que só há cerca de três anos percebeu isso. Que se saiba, é o único caso na família.

"Enquanto tinha o bilhete de identidade normal, que era só meter o dedo na tinta, ficava só aquele borrão e nunca me disseram nada. Mas, há uns três anos, quando fui fazer o cartão do cidadão, chamaram-me, porque a máquina não conseguia ler o meu dedo. Fizeram-me passar o dedo numa borrachinha e continuava sem dar. Limparam-me com uma compressa, porque achavam que o problema estava na transpiração, mas continuou sem dar. Acabaram por desistir, mas consegui ter o cartão", contou ao PÚBLICO, enquanto olhava para os seus dedos de pontas arredondadas, semelhantes aos mostrados no estudo do The American Journal of Human Genetics.

Apesar da recente descoberta, Júlia já teve tempo para algumas peripécias. Foi telefonista durante mais de 30 anos. Quase no final da carreira no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, implementaram, à semelhança do que já acontecia noutras unidades hospitalares, um sistema de identificação e controlo dos profissionais que era feito através da impressão digital.

Quando chegou a vez de recolher os dados de Júlia Santos, voltou a ter o mesmo problema: "Tentaram com um dedo e a máquina não conseguia ler. Depois foram tentando com outros. Tentaram com os dez dedos das mãos e nada. Disseram-me que não tinha impressões digitais e eu ainda brinquei que podíamos tentar com os pés. As pessoas metiam-se comigo a dizer que eu tinha sorte de não ter que colocar o dedo na máquina. Pensaram arranjar-me um código, mas, como me ia reformar, acabou por ficar assim."

Em caso de ausência de impressões digitais, a alternativa passa, muitas vezes, pela criação de um código ou, em sistemas que exigem mais segurança, a identificação é feita pela íris do utilizador. Mas o desconhecimento sobre este tipo de casos é tão grande que os autores do estudo falam deste problema como a "doença de atraso na imigração", pelos problemas que causa a quem viaja para países onde é necessária esta identificação biométrica à entrada.

Brincar com a situação

A descoberta recente, por agora, não lhe trouxe grandes dissabores e até tem servido mais para brincadeira, costumando dizer que "gastou" os dedos nas teclas dos telefones pela profissão que teve. "Eu já cheguei a brincar a dizer que podia formar uma quadrilha, já que não deixo impressões digitais, mas a verdade é que não cheguei a tirar partido disso. Mesmo no hospital, como era telefonista, tinha de cumprir o horário, por isso tanto fazia ter de pôr como não ter de pôr o dedo."

Este não é, contudo, o primeiro estudo sobre o tema. Já antes tinha sido estabelecida uma relação entre a falta de impressões digitais e a Síndrome de Naegeli-Franceschetti-Jadassohn, que se pode manifestar desta forma: em 2006, um grupo de investigadores de Israel, do qual fazia parte Eli Shperjer, descobriu que esta síndrome se deve a um mau funcionamento de uma proteína conhecida como "cretin 14".

Agora, o novo estudo suíço e israelita descobriu também uma relação entre a mutação do SMARCAD1 e a uma menor produção de glândulas sudoríparas, o que faz com que estas pessoas tenham menor odor. Uma situação que remete para o mundo literário do livro O Perfume, do alemão Patrick Süskind, onde o protagonista não tinha cheiro nenhum, o que lhe permitia passar totalmente despercebido. Sobre esta segunda conclusão, Júlia Santos diz já não ter a mesma sorte. "Isso comigo já não é nada assim. Eram bom, mas não. Então agora, no Verão, até com o cabelo molhado fico. Dizem que talvez seja por ser diabética", remata, no dia em que percebeu que as suas mãos entraram para o mundo da ciência.

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