Juízes não aceitam que o Governo tenha acesso aos processos através do Citius

Associação Sindical de Juízes quer Conselho Superior da Magistratura a gerir plataforma informática e diz que reorganização judiciária pode colocar em causa independência dos magistrados.

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Fernando Veludo/NFactos

A secretária-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Maria José Costeira, manifestou-se esta sexta-feira contra a plataforma informática dos tribunais ser gerida pelo Ministério da Justiça, como sempre sucedeu até hoje.

“Como é que se pode aceitar que o Ministério da Justiça tenha acesso a todo o momento à informação constante dos processos, mesmo que tenha sido determinado pelo juiz que o processo é confidencial? Não se compreende nem se aceita”, disse a magistrada no X Congresso dos Juízes Portugueses,  que termina este sábado em Tróia.

“Como é que se explica que quem gere, administra e controla o sistema informático dos tribunais seja o Governo, através do Ministério da Justiça? Como é que se pode compreender que seja o ministério a definir o sistema informático, a dominar e gerir a informação retirada desse sistema, a determinar qual a informação que o sistema deve prestar?”, insistiu Maria José Costeira.

Para os magistrados, a “plataforma informática dos tribunais é um instrumento de trabalho mais do que necessário à sua actividade” que tem de passar a ser gerida pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), o órgão de disciplina e gestão dos juízes. “É urgente que o CSM tome as providências necessárias para pôr fim a esta situação e avocar para si o controle e gestão da plataforma informática dos tribunais”, defendeu Maria José Costeira, adiantando, porém que este não é o momento certo para o fazer, uma vez que os tribunais “estão em caos há mais de um mês”, precisamente por causa do crash da plataforma informática Citius - que não conseguiu acompanhar a reforma judiciária iniciada a 1 de Setembro.  Uma situação que compromete “o direito constitucional dos cidadãos de acesso à justiça”.

Maria José Costeira diz que a reorganização judiciária tem aspectos que podem colocar em causa a independência dos juízes. “Este novo modelo organizativo, se mal interpretado e aplicado, pode pôr em causa essa independência. E tanto assim é que a própria lei sentiu a necessidade de esclarecer que os poderes do CSM e os poderes do presidente da comarca não podem interferir com a independência judicial dos juízes”.

O facto de os objectivos estratégicos dos tribunais terem passado a ser fixados não apenas pelo CSM mas também por um grupo que integra um membro do Governo e um representante da Procuradoria-Geral da República constitui, no entender da dirigente associativa, uma “intromissão inaceitável que afronta claramente o princípio constitucional de separação de poderes”.

As “condições dramáticas” de funcionamento de alguns tribunais não foram também esquecidas por Maria José Costeira: “Não conheço nenhum órgão de soberania que trabalhe em contentores”, criticou, exigindo à Assembleia da República e à tutela governamental que “comecem a tratar os tribunais como órgãos de soberania”.

Não vieram apenas da Associação Sindical de Juízes, entidade que organizou o congresso, as críticas ao novo mapa judiciário e ao colapso informático. O sociólogo Casimiro Ferreira recorreu a uma terminologia bélica para descrever os efeitos colaterais que as reformas provocam nos sectores mais vulneráveis da sociedade – pobres, desempregados, excluídos –, e até na classe média. O investigador considerou inaceitável que se tenha avançado com medidas “apesar de se saber que as coisas não iam funcionar bem”.

“As pessoas que decidiram a validade de assumir os riscos não são as mesmas que sofrem as consequências” da reforma judiciária, criticou, definindo a paralisação quase completa que se tem vivido nos tribunais como “um tempo de excepção altamente perturbador, terrível para os cidadãos”. E também falou da fragilização dos direitos de acesso à justiça.

Outros, porém, preferiram apontar baterias para a comunicação social por causa da imagem que dá aos cidadãos da justiça. Foi o caso do ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça Noronha do Nascimento, que se socorreu das palavras do filósofo austríaco Karl Popper para expressar as suas ideias: “Numa democracia não deveria existir nenhum poder incontrolado. Ora, a TV tornou-se hoje um poder colossal, porventura o maior de todos. A TV adquiriu um poder demasiado vasto no seio da democracia; e nenhuma democracia sobrevive se não puser cobro a essa omnipotência. Não haverá democracia se não submetermos a TV a um controlo.”

Num regime em que a figura do Presidente da República se mantém “presuntivamente intocável como um dos símbolos da nação, restam os tribunais e os juízes como bombos da festa para, através da degradação pública da sua imagem, se avantajar a imagem de quem se lhes quer contrapor”, teorizou Noronha do Nascimento, para quem a comunicação social serve a estratégia dos superagentes económicos de “massacrar o judiciário” e “atemorizar os juízes”.

Um homem caldeado pelo frio da serra
Hoje juiz desembargador,  Inácio Monteiro contou aos colegas em Tróia como fez carreira na Beira Interior, “caldeado pelo frio da serra e pelo calor de pouca dura”. E apesar de se mostrar adepto das mudanças no mundo da justiça, deixou no ar uma certeza: “O interior foi novamente considerado o parente pobre” da mais recente reorganização dos tribunais, correndo-se agora o risco de se negar justiça a quem vive longe da sede das novas comarcas e não tem transporte para lá chegar. “Quem tiver dúvidas que pergunte ao utente da justiça de Resende, que, vivendo junto ao Douro, se vê agora sem tribunal e sem transportes adequados para chegar a Viseu”, exemplificou. “Que pergunte ao utente da justiça de Sargento-Mor, às portas de Coimbra, que pertencia à comarca da Mealhada e agora passa a pertencer à  comarca de Aveiro e ao Tribunal da Relação do Porto”. A reforma judiciária, concluiu, “deve-se ir reformando a si própria, pois não se pode esboçar de régua e esquadro”.

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